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O Digital e o Direito[1]

O Digital e o Direito[1]

“Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.” (Camões)

Parafraseando António Gedeão “sempre que um homem sonha o mundo pula e avança” (Pedra Filosofal, 1956). O final do Sec. XX trouxe com ele o despontar das novas tecnologias, aliadas à inovação e à criatividade humana. Estas, nas quais a informática, na sua conceção mais ampla, vem desenrolando nestas últimas décadas da Humanidade verdadeiras mudanças, coloca o Homem perante uma realidade nova e nunca antes vivenciada. Nem mesmo a Revolução Industrial iniciada em meados do Sec. XVIII, que provocou como é reconhecido um corte e um salto civilizacional do Homem com o surgimento da máquina e a substituição que esta ditou à ação humana direta, terá sido tão disruptiva, se atendermos à rapidez e à intensidade generalizadas, que a atual mudança está a provocar na Humanidade. O denominado mundo digital, fundamentalmente, a velocidade com que este surgiu e vem despontando em todos os domínios de ação humana, traz ínsita a coincidência de dois mundos, tecnologicamente díspares, por vezes antagónicos, passiveis de gerar, até, choques sociais. Neste caso, o mundo digital versus o velho universo físico e analógico, perante o qual o Homem tem de conviver e se adaptar continuamente, já que tudo aquilo que atualmente corresponde a esta nova dimensão digital,  não só  funciona a uma escala mundial, como também o envolvimento social e profissional, com que as comunidades humanas operam, neste novo mundo digital, é assegurado continuadamente 24 sobre 24 horas, 365 dias por ano.

Até relativamente pouco tempo a Televisão foi o meio de comunicação mais poderoso. Conjuga informação, diversão pura, intriga, suspense, sensualidade, tudo num suporte de imagem. Sem a Fox, canal de informação mais visto dos EUA, muito provavelmente Trump não teria sido eleito nas primárias, que o levariam a presidente em 2016. Igualmente, o entretenimento promovido nas TVs, terá levado Moralles e Zelensky às presidências da Guatemala e da Ucrânia, respetivamente.

As redes sociais digitais são hoje, no entanto, a principal infraestrutura de acesso à informação e ao debate público, sabendo-se que mais de metade da população mundial já está ligada à Internet e que os utilizadores mundiais atingem 5,3 biliões[2]. Vêm alcandorando-se, cada vez mais, como voz pública e essencial e um dos atuais elementos principais para o regular funcionamento da Democracia nos países ocidentais. De acordo com o Relatório Global Digital 2022[3] a par dos utilizadores mundiais da Internet, o número de utilizadores das redes sociais como o Facebook, Instagram, YouTube, Twiter, LinkedIn, TikTok, WhatsApp, etc., ronda atualmente os 4,6 biliões em todo o mundo. Estas redes digitais, para além de permitirem a comunicação interpessoal ou em grupo, permitem a capacidade de formar comunidades humanas cimentadas em interesses comuns numa realidade sociológica nova, estimando-se, por exemplo, que muito proximamente em Portugal 63% da população será informada pelas redes e já não pelos meios tradicionais.

Paralelamente, novos desafios são colocados, ainda, pelas novas Plataformas digitais (casos da Bolt, Uber, Glovo, Amazon, etc.), que apontam para um crescimento exponencial após pandemia do SARS-CoV-2. Seguindo dados do Conselho Europeu em 2022 existiam mais de 28,3 milhões de pessoas a operar, enquanto trabalhadores, nas plataformas digitais, prevendo-se que o número venha a ascender a 43 milhões em 2025. Embora, de forma diferente, as plataformas digitais usam os meios tecnológicos assentes em formato digital exclusivo, para atribuir tarefas, monitorizar, avaliar e tomar decisões sobre as pessoas que trabalham nas Plataformas. Estas práticas são frequentemente designadas por “gestão algorítmica”. A “gestão algorítmica” é, aliás, utilizada cada vez mais de forma diversa no mercado de trabalho, mas é claramente inerente ao modelo de negócio das plataformas de trabalho digitais, o que constitui clara inovação relativamente aquilo que caracterizava, até há bem pouco tempo, a relação jurídica típica de índole laboral.

Outro dos desafios que se coloca no mundo digital liga-se à denominada Inteligência Artificial (IA). A posição dos Estados vem sendo crescentemente alertada, face aos riscos que se encontram associados à utilização da IA, e a forma como a mesma pode colidir com os direitos dos cidadãos e, consequentemente, dos trabalhadores, quando esta penetra no mundo laboral. Vem isto a propósito de que os sistemas de IA, como é sabido, se alimentam de dados — muitos deles pessoais e profissionais — e que têm a extraordinária capacidade de processar dados em quantidade e rapidez avassaladoras. Isto é, uma capacidade de aprender com o processamento que fazem justamente desses dados. O surgimento, em novembro de 2022, do ChatGPT, um sistema de IA generativo, trouxe a discussão sobre esta matéria a um patamar elevado das áreas, por exemplo, educativas, académicas, culturais, artísticas, mas também, e, sobretudo, do Trabalho.

Quando reportamos estas “realidades” ao mundo do Direito constatamos as inevitáveis dificuldades que este, como aliás, as demais ordens sociais acabam por sentir no acompanhamento, compreensão e respostas, a muito dos fenómenos sociais, quando estes despontam. No caso, estamos, além do mais, perante uma ordem social, juridicamente falando, tradicionalmente, por um lado, resistente às grandes inovações instantâneas e, por outro, limitada no seu mundus de recursos axiomáticos e hermenêuticos -para além de técnicos-, que lhe permita acompanhar a velocidade e a intensidade com que muitas destas mudanças se fazem operar na vida social e profissional. Eis, pois, porque, será curial afirmar-se que a regulação jurídica deste universo digital (novo) está ainda no dealbar. Concretamente, teremos por garantido, no presente, apenas, aquilo que evidenciará quão difícil se torna compatibilizar este novo universo com os conceitos jurídicos tradicionais acabando por tornar, mesmo, inconsequentes algumas tentativas.

Acrescerá, ainda, subjetivamente falando, a constatação de muita resistência, com que certos destinatários (a maioria, aliás, fruto de toda esta recente mudança) vêm resistindo às tentativas e aos impulsos de regulação do mundo digital. Em parte, porque este universo se encontra em grande medida reservado às grandes empresas da era digital e estas detêm mecanismos de transnacionalidade (que lhes advém da sua dimensão), e de se encontrarem num dos setores mais dinâmicos da economia, que aposta na inovação e nos modelos de negócio diferenciados, gozando em contrapartida de ausência de efetivos parâmetros regulatórios.

A verdade é que se atendermos aquilo, que é genuinamente o sentido mais claro do Direito, na busca de regular as relações da vida social, prosseguindo certos fins, como a segurança e a justiça, e a conjugar mesmo interesses conflituantes; não podemos deixar de considerar a necessidade de que este dever atender à realidade social que o envolve. Tendo subjacente, de resto, que à ordem jurídica, como defende SANTOS JUSTO, deve estar associada a ideia de um direito relativamente estável num certo tempo, constituído por um conjunto de normas correlacionadas e harmónicas, entre si, a que se atribui a designação de direito positivo (2011).

Mas, não colhe, atualmente, sem mais e de forma acrítica, tentar aplicar às redes sociais e às Plataformas (antes assinaladas), através dos novos meios digitais, limites decorrentes de conceções jurídicas tradicionais. Tomemos o caso do mundo do Trabalho, aquele onde hoje mais se vai evidenciando esta interpenetração do mundo digital na regulação de direitos, no caso dos trabalhadores. Particularmente, no caso do ordenamento jurídico português, como encarar e estabelecer limites positivos e negativos face aos conceitos jurídicos, por exemplo, associados aos dos deveres de lealdade, sigilo, reserva da vida pessoal ou proteção de dados pessoais ou da imagem quando ligados à liberdade de expressão, quando esta se afirme em contexto das redes sociais digitais e das Plataformas digitais?

Estamos, de facto, perante uma nova realidade indefinível, que começa a seguir parâmetros próprios e que ocupa “antigos espaços” que, no caso, destes conceitos jurídicos, todos eles já se encontravam devidamente regulados.

Pensamos, portanto, que esta nova realidade necessitará de ser repensada, ser requacionada em novos moldes de dogmática jurídica, que urge não descurar. Estaremos provavelmente perante a necessidade de serem reconjugadas novas dimensões, no mundus jurídico — inovação tecnológica, comunidade de pessoas, esfera pública de interação humana — e, quiçá, reconstruir “novas dimensões” de cariz jurídico para conceitos como lealdade, sigilo, reserva da vida pessoal ou proteção de dados pessoais ou da imagem. Acrescentando conteúdos novos como a privacidade, a identidade, o “esquecimento” ou o “desligamento”, aliados à liberdade de expressão.

Mas, Direito é fenómeno humano, não do Homem isolado, mas como ser social. Ubi ius, ibi societas, no dizer do brocardo latino. Sociabilidade, que se verifica em qualquer que seja o estádio civilizacional e sua manifestação, independentemente, até, da evolução técnica que se venha assistindo. Pelo que, o fenómeno social nos aparece sempre como condicionante do fenómeno jurídico. E este, na exata medida em que o é, deve corresponder, se necessário for, utilizando todos os atuais mecanismos de regulação jurídica que se encontrem ao seu dispor.

REFERÊNCIAS

SANTOS JUSTO, António (2011). Introdução ao Estudo do Direito. Coimbra.


[1] Breve reflexão na sequência de comunicação que apresentámos na IV edição do Congresso Luso-brasileiro de Gestão e Conformidade, Funchal, 22, 23 e 24 de maio de 2024.

[2] V. https://www.statista.com/markets/424/topic/537/demographics-use/#overview

[3] https://datareportal.com/reports/digital-2022-global-overview-report

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