(Imagem retirada de: https://radiopeaobrasil.com.br/tempos-modernos-e-uma-critica-pungente-da-modernidade-capitalista-filme/)
Na icônica foto acima, retirada do filme Tempos Modernos, filme brilhante de Charles Chaplin, é simbolizada a vida de um trabalhador comum, um homem que está em busca de se estabelecer tanto profissionalmente quanto como indivíduo em uma sociedade cheia de inovações tecnológicas e contradições. O filme se passa na década de 1930, logo após a “Grande Depressão”, ou “crise de 29”. Nessa época, houve a recessão no capitalismo, quebra da bolsa de valores de Nova York e outras tensões sociais que resultaram em grande desemprego, fome e miséria. Esta cena, e o próprio filme como um todo, tem sido usado como exemplo para a reflexão de toda a complexidade do mundo do trabalho ao longo da modernidade.
Muitos pensadores voltaram o seu olhar de interesse para a categoria trabalho, instigados pela complexidade do ato de trabalhar e pela sua indispensável realização para qualquer sociedade, da mais primitiva até a mais moderna. Sob os diversos ângulos possíveis, o trabalho humano tem sido esmiuçado pela busca de seu entendimento, classificação ou dominação. Sem a pretensão de esgotar o assunto e admitindo a impossibilidade de se buscar todo o referencial teórico referente ao tema, selecionamos Hannah Arendt para uma breve revisita sobre o caráter multifacetário do trabalho.
Mais especificamente, psicólogos, economistas, historiadores e cientistas sociais têm se preocupado com a relação indivíduo/trabalho. Nessa relação estariam a satisfação de trabalhar, as pressões e o jogo do poder inerente ao mundo do trabalho, os mecanismos de exploração usados na esfera do trabalho, o estigma do desemprego, a geração de riqueza e de pobreza, etc.
Hannah Arendt (1987) traz, com bastante propriedade, a discussão da inadequação de uma palavra só para designar o ato de trabalhar e, justificando a diferenciação que ela faz entre labore trabalho, diz:
Contra essa carência de provas históricas, porém, há uma testemunha muito eloqüente e obstinada: a simples circunstância de que todas as línguas européias, antigas e modernas, possuem duas palavras de etimologia diferente para designar o que para nós, hoje, é a mesma atividade, e conservam ambas a despeito do fato de serem repetidamente usadas como sinônimas (1987, p.90).
Em nota de pé de página do seu livro, “A Condição Humana”, a autora lembra que a língua grega diferencia uma atividade da outra, denominando as “mãos que trabalham” do “corpo que labora” com as palavras ponein e ergazesthai; já o latim, laborare e facere; o francês, travailler e ouvrer e o alemão, arbeiten e werken, sendo que todas que designam o “labor” estão vinculados à sofrimento, atividade penosa, atribulada.
A autora parte da ideia de Aristóteles que distinguia três modos de vida[1] que os homens podiam escolher livremente, todos independendo das necessidades da vida, pois, segundo a lógica do pensamento, os indivíduos que com isso se ocupam não dispõem da liberdade de seus movimentos e ações. Segundo o pensamento aristotélico, nem o labor nem o trabalho eram considerados dignos o suficiente para constituir um modo de vida autenticamente humano, pois, se os homens estavam preocupados em servir ou produzir o que é útil, não podiam ser livres (ARENDT, 1987).
Com a expressão vita activa, Hannah Arendt designava três atividades humanas fundamentais: o labor, o trabalho e a ação.
O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida.
O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie e cuja mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade.
A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os seres humanos sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. “Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política, mas esta pluralidade é especificamente a condição (…) de toda vida política” (1987, p.15).
Conforme a análise da autora, a expressão vita activa perde o seu significado com o desaparecimento da antiga cidade-estado e passa a designar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo, passando a ação a ser vista como uma das necessidades da vida terrena, como o labour e o trabalho, restando apenas a contemplação como o único modo de vida realmente livre.
Assim, segundo Hannah Arendt, a era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho e transformou as comunidades modernas em sociedades de operários e assalariados, concentrando-se tudo em torno do labor. Algo extremamente importante trazido pela autora, absolutamente atual, é que não é necessário, para que haja a sociedade acima caracterizada, que todos sejam operários, mas que todos considerem o que fazem “primordialmente como modo de garantir a própria subsistência e a vida de suas famílias” (1987, p.56).
A autora afirma que a esfera social desencadeou um crescimento artificial do natural, caracterizado pelo aumento acelerado da produtividade do labor, perceptível na “divisão do trabalho”, advinda da mecanização dos processos do labor. É a transferência, com excelência, da esfera privada para a esfera pública. Houve assim uma excepcional transformação do labor, considerada a princípio o ato de “cambalear sob uma carga”, exercida só pelos miseráveis e, agora, não só promovida para a esfera pública como também capaz de distinguir e destacar uma pessoa da outra.
A autora conclui que a inesperada e impressionante promoção do labor, da mais humilhante e desprezível posição à mais alta categoria, à mais valorizada de todas as atividades humanas, começou
quando Locke descobriu que o labour é a fonte de toda a propriedade; prosseguiu quando Adam Smith afirmou que esse mesmo labour era a fonte de toda a riqueza; e atingiu o clímax no system of labor de Marx, no qual o labor passou a ser a origem de toda produtividade e a expressão da própria humanidade do homem (1987, p.113).
No mundo antigo, ser político significava atingir a mais alta possibilidade da existência humana. Essa vida pública só era possível depois de atendidas as necessidades mais urgentes que garantissem a sobrevivência. Na Antiguidade, o meio de atendê-la era o labor. Quando se tinha escravos para laborar em favor da obtenção do necessário para a sobrevivência, o indivíduo era uma pessoa livre para ingressar na vida pública (idem, 1987).
Na modernidade, o indivíduo parece nunca transpor essa etapa de satisfazer as necessidades básicas, pois parece que essa categoria tem absorvido mais e mais itens.
A autora se surpreende que mesmo com uma transformação tão profunda trazida pela modernidade, que promove o animal laborans à posição antes ocupada pelo animal rationale, não se tenha produzido, nessa mesma modernidade, teorias que distinguissem claramente o “animal laborans e o homo faber, entre o labor do nosso corpo e o trabalho de nossas mãos” (1987, p.96). Ela percebe três distinções feitas ao longo da era moderna: trabalho produtivo e trabalho improdutivo, trabalho qualificado e trabalho não qualificado e trabalho manual e trabalho intelectual. Para Hannah Arendt, apenas a reflexão entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo se mostra profunda o suficiente, apesar de não ser totalmente adequada para contemplar a complexidade da questão. É a teoria que mais corresponde à distinção entre trabalho e labor (idem, 1987). O ponto de vista da era moderna é, conclui a autora:
(…) todo trabalho é “produtivo”; e perde sua validade a distinção anterior entre a realização de tarefas servis, que não deixam vestígios, e a produção de coisas suficientemente duráveis para que sejam acumuladas. Como vimos antes, o ponto de vista social é idêntico à interpretação que nada leva em conta a não ser o processo vital da humanidade; e, dentro de seu sistema de referência, todas as coisas tornam-se objetos de consumo. Numa sociedade “socializada” (…) a distinção entre labor e trabalho desapareceria completamente; todo trabalho tornar-se-ia labor, uma vez que todas as coisas seriam concebidas, não sem sua qualidade mundana e objetiva, mas como resultados da força viva do labor, como funções do processo vital (ARENDT, 1987, p.100).
Para a autora, as demais distinções — trabalho manual e trabalho intelectual, trabalho qualificado e trabalho não qualificado — são de importância secundária, pois apenas referem-se a atividades diferentes, com estágios e qualidades diferenciadas.
Hannah insiste, no capítulo “O Caráter de Objeto do Mundo”, que é dentro desse mundo de coisas duráveis que se localizam os bens de consumo com os quais a vida assegura os meios de sua sobrevivência, afirmando que essas coisas destinadas ao consumo e ao uso surgem e desaparecem numa dinâmica incessante. À medida que os experimentamos, nos habituamos e acostumamos. São essas coisas destinadas ao consumo “que geram a familiaridade do mundo, seus costumes e hábitos de intercâmbio entre homens e as coisas, bem como entre homens e homens” (1987, p.106).
Hannah Arendt visita o conceito de Marx sobre o trabalho, enfocando que ao definir o trabalho como o “metabolismo do homem com a natureza”, cujo processo se dá pela adaptação do material da natureza às necessidades do homem, Marx deixa claro que o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do eterno ciclo da vida biológica, ciclo este sustentado pelo consumo, e a atividade que provê os meios de consumo não sendo outro senão o labor.
Tudo que o labor produz destina-se a alimentar quase imediatamente o processo da vida humana, e este consumo, regenerando o processo vital, produz – ou antes, reproduz – nova “força de trabalho” de que o corpo necessita para seu posterior sustento. Do ponto de vista das exigências do próprio processo vital — a “necessidade de subsistir”, como o chamava Locke — o labor e o consumo seguem-se tão de perto que quase chegam a constituir um único movimento — movimento que mal termina, deve começar novamente. A “necessidade de subsistir” comanda tanto o labor quanto o consumo (1987, p.111).
Finalizando a preciosa contribuição que a Hannah Arendt faz do trabalho e do labor — aquele o que produz bens duráveis e este o necessário à sobrevivência do corpo — a autora faz uma avaliação valorativa do tempo de trabalho e de não-trabalho na sociedade moderna, quando traz em seu texto a oposição trabalho/lazer. Ela diz que a mesma tendência de reduzir todas as atividades à condição de prover o próprio sustento é evidente em todas as teorias modernas do trabalho, que, quase sem diferenças entre si, definem o trabalho como o oposto do lazer. O resultado disso é que todas as atividades “formais”, independentemente do seu resultado, são chamadas de trabalho, enquanto toda atividade não classificada como necessária, nem para a vida do indivíduo nem para a vida da sociedade, é classificado como lazer (1987).
À luz de tamanha lucidez e complexidade ao avaliar o ato de trabalhar, fica-nos a certeza que a reflexão dessa destacada filósofa permanece fundamental para entendermos o espaço ocupado pelo trabalho na vida do indivíduo contemporâneo brasileiro, apesar de nos últimos cinquenta anos terem sido acrescentados novos e complexos elementos tecnológicos e contraditórios ao ato de trabalhar.
Referências
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10 ed. Rio de janeiro, Forense Universitária, 1987.
[1] Os três modos de vida distintos por Aristóteles são: “a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da polis, na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada através do consumo humano” (1987: 21).