Me parece fascinante, exclusivamente do ponto de vista analítico, o comportamento de grande parte de bolsonaristas manifestando-se em massa, atos multiplicados e agudizados principalmente após os resultados das eleições brasileiras para presidente – e a consequente vitória do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva -, em novembro de 2022.
Nessas manifestações, ocorridas em várias partes do país durante meses seguidos, admiradores do então Presidente Jair Bolsonaro protagonizaram um verdadeiro teatro do absurdo, com inúmeras cenas surreais produzidas coletivamente: pedido de socorro a extraterrestres, com direito a “Código Morse intergaláctico” emitido por aparelhos celulares postados no alto das cabeças; hino nacional brasileiro solenemente entoado para um pneu(!); ordem unida e marcha marcial dirigida a um Optimus Prime “patriota”; sem mencionar as incontáveis cenas de pessoas em oração e aos gritos, ajoelhadas em muros e portões de quarteis, em uma espécie de intercambialidade non sense entre Deus e as Forças Armadas.
Se analisarmos pela perspectiva psicanalítica, já dizia Freud[1] que a massa é extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica, e que o improvável não é considerado, não existe para ela. Em busca do entendimento da racionalidade na época moderna, Freud considera que a psicologia individual é ao mesmo tempo psicologia social, já que na sua teoria o indivíduo leva sempre em consideração o outro como modelo. Os vínculos entre sujeitos se estabelecem numa dinâmica de exaltação dos afetos por meio do fenômeno da identificação. A análise das características de um indivíduo e da instituição da sociedade de massa à qual pertence ajuda, portanto, a compreender o modo como se dão os conflitos psíquicos escondidos nos conflitos sociais.
Em “Psicologia das massas e análise do eu” (1921), Freud investiga a o modo de agir peculiar do sujeito quando integra uma massa e como seu comportamento pode ser alterado, tomando como ponto de partida as concepções de Gustave Le Bom[2] . Este, em seus estudos, observa nas massas a diminuição do rendimento intelectual dos seus integrantes, bem como a falta de racionalidade, de coerência e o aumento da afetividade, das emoções e da solidariedade entre os seus membros. Freud ainda enaltece Le Bom quando este afirma o quanto é interessante que numa massa psicológica, quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, sejam semelhantes ou dessemelhantes na sua forma de viver, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o simples fato de terem se transformado em massa os torna possuidores de uma espécie de alma coletiva.
Ao investigar todas as mudanças pelas quais passa o indivíduo na massa, Freud destaca a ideia de identificação e o papel do Líder. Segundo ele, os indivíduos membros do grupo são reunidos pela formação de vínculos de amor com os outros pertencentes à massa e com o Líder, veem nele um exemplo e um representante.
Se analisarmos o Líder e ex-presidente Jair Bolsonaro para a massa composta por adeptos do bolsonarismo, podemos afirmar que ele se apresenta de maneira simples, populista e o seu discurso é muito acessível, além de ser carismático. Demonstra uma sinceridade desconcertante, completamente sem filtros e insiste em atacar problemas há muito presentes na sociedade brasileira, tais como corrupção e violência. Simultaneamente, enaltece continuamente Deus, a família e a pátria.
É importante ressaltar, segundo Freud, que como a relação do indivíduo de massa com o Líder é antes de tudo afetiva, não adiantam fatos para desaprovar o seu mestre. Presenciamos isso em diversas situações nos quatro anos do mandato do ex-presidente Bolsonaro. Por mais absurdas que fossem as afirmações do Líder, o indivíduo de massa rebaixa sua consciência e reduz sua capacidade de julgamento.
Segundo os pensadores citados, os sentimentos da massa são sempre muito simples e exaltados. Ela não conhece dúvida e acredita fielmente no que seus membros divulgam. Não se dobra à evidências. Ela é instável e vai prontamente a extremos; os boatos espalhados se transformam de imediato em certeza indiscutível, um indício de antipatia se transforma rapidamente um ódio violento.
A massa é influenciada não pela lógica ou argumentos e sim por afirmações contundentes, exageros e pela repetição sistemática da mesma informação, independente do que é verdadeiro ou falso. Como ela quer ser conduzida pelo seu Líder, exige dele força e até violência. Clama por dominação, quer temer os seus senhores. No fundo, inteiramente conservadora, rejeita inovações devido à sua ilimitada reverência pela tradição.
É impressionante, do ponto de vista psicanalítico, – e não desprezando todos os outros olhares, principalmente o dos Cientistas Sociais -, que Freud escreveu tais ideias há mais de cem anos, mas parece estar descrevendo exatamente os recentes eventos no Brasil.
Referências
FREUD, Sigmundo. Psicologia das massas e análise do eu (1921). Publicado em PDF no site: http://maratavarespsictics.pbworks.com/w/file/fetch/74213144/99170850-FREUD-S-OC-Vol-15-Psicologia-das-Massas-e-Analise-do-Eu-e-outros-textos-1920-1923.pdf, consultado em 10 de junho de 2023.
[1] Sigmund Freud (6 de maio de 1856 – Londres, 23 de setembro de 1939) foi um neurologista e psiquiatra austríaco, criador da psicanálise e considerado a personalidade mais influente da história no campo da psicologia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Sigmund_Freud
[2] Gustave Le Bon (7 de maio de 1841–13 de dezembro de 1931) foi um polímata francês cujas áreas de interesse incluíam antropologia, psicologia, sociologia, medicina, e física. Ele é mais conhecido por seu trabalho em 1895, A Multidão: Um Estudo da Mente Popular, considerado um dos trabalhos seminais da psicologia das multidões. https://pt.wikipedia.org/wiki/Gustave_Le_Bon