Escrever sobre corrupção e seus possíveis mecanismos de indução cognitiva não é tarefa fácil. Trata-se de um tema árido, porém de extrema necessidade no atual cenário global, marcado por disputas de poder, tendências capitalistas e populismos exacerbados. Partindo da premissa de que a corrupção instaurada nas mais diversas instituições públicas rouba dinheiro dos mais pobres, tira-lhes o direito básico da vida e não lhes dá tempo para refletir sobre sua condição humana, este texto provoca uma reflexão sobre a relação entre o desenvolvimento cerebral e a ação de corrupção. Longe de justificar o ato, o objetivo é explorar três possíveis motores indutores da corrupção: ocasião, genética e escolha. Salienta-se a necessidade urgente de atenção aos mecanismos de transparência e de controle dos gastos públicos, em consonância aos aspectos legais, sociais e educacionais.
Introdução
Será que todo ato corrupto é aprendido ou será apenas fruto da genética humana? Talvez nenhum indivíduo nasça corrupto ou predisposto ao cometimento do delito, mas apenas aprenda com as pessoas, geralmente, as mais próximas. Será?
No ano de 2019, publiquei um livro intitulado Há corrupção na Educação? Relatos daqueles que vivem essa realidade no chão da escola pública brasileira (BOCCHI, 2019), resultado de minha pesquisa de Doutorado sobre o mesmo tema, desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), durante quatro anos. Na época, constatei que havia uma cultura estabelecida de apropriação privada dos recursos públicos arraigada no país. Salientei que a invisibilidade dessa rede de corrupção se instalava e se fortalecia na atitude de consentimento dos envolvidos, mesmo não concordando inteiramente. Faziam-se de cegos, suspeitavam ou até mesmo presenciavam, mas com a cultura do “abafa”, deixavam-se vencer. Quem via, não denunciava; quem ouvia, fazia-se de surdo; quem falava, desmentia depois. O medo mesclava-se à covardia, e o mais forte vencia.
Passados anos da publicação de meu livro, pouca coisa mudou no cenário brasileiro; a corrupção continua presente, os envolvidos parecem continuar consentindo, mesmo parecendo não concordar. O medo continua a misturar-se com a covardia, e a lei do mais forte continua a prevalecer. Assim sendo, é urgente desenvolver pesquisas com bases científicas que procurem caminhos reflexivos para essa prática centenária, para testar hipóteses, comparar possibilidades e provocar um amplo e profundo processo cognitivo sobre a questão.
Nas linhas a seguir, convido você, leitor ou leitora, para embarcar comigo em uma viagem cognitiva sobre os possíveis fatores mentais que podem impulsionar uma ação corrupta, considerando, para isso, o desenvolvimento cerebral e a sua influência no comportamento humano.
A condição do humano
Edwin Sutherland (1883–1950), por volta do ano de 1930, desenvolveu uma pesquisa que tentava explicar os motivos que levavam as pessoas a se envolverem com o crime. A teoria desenvolvida por Sutherland (1939) baseava-se na ideia de que uma certa desorganização social gerava o comportamento criminal.
A função social do crime é de mostrar as fraquezas da desorganização social. Ao mesmo tempo em que a dor revela que o corpo vai mal, o crime revela um vício da estrutura social, sobretudo quando ele tende a predominar. O crime é um sintoma da desorganização social e pode sem dúvida ser reduzido em proporções consideráveis, simplesmente por uma reforma da estrutura social. (SUTHERLAND, 1939, p. 102, tradução nossa).
As ideias apresentadas por Sutherland (1939) a respeito do crime, como fator social, representam um ponto de partida importante para o estudo da corrupção, pois, segundo o Código Penal Brasileiro — Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (BRASIL, 1940)[1], a corrupção é crime e, como tal, deve ser combatida por toda a sociedade. É definida como a utilização do poder ou da autoridade para obter vantagens e fazer uso do dinheiro público para o seu próprio interesse ou de alguém próximo.
A influência do meio na formação humana é tema estudado há séculos por grandes áreas como a Filosofia, a Sociologia ou a Antropologia. Sócrates (470 a.C.) acreditava que o homem para fazer o bem bastava conhecê-lo, ou melhor, o homem só fazia o mal por ignorância. Por essa razão, o filósofo levava o conhecimento a todos os cidadãos gregos e passou a representar um perigo para a elite mais conservadora de Atenas, por defender que o mundo era para todos e não para alguns. Sócrates foi o criador de um método denominado maiêutica, o qual “[…] consiste em forçar o interlocutor a desenvolver seu pensamento sobre uma questão que ele pensa em conhecer, para conduzi-lo, de consequência e consequência, a contradizer-se, e, portanto, a confessar que nada sabe” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 251).
Para Platão (427 a.C.), ao nascer, o homem ganhava uma alma, a qual já possuía conhecimento de outras vidas. Esse conhecimento anterior classificava o homem em classes sociais determinadas. O mundo era o reflexo do mundo das ideias, dividido entre o mundo sensível e o objetivo. Já Aristóteles (384 a.C.) definia a humanidade como um conjunto de capacidades biológicas do homem, que, como substância, possuía forma (alma) e matéria (corpo).
Sócrates, Platão e Aristóteles tinham uma visão diferenciada sobre o homem quanto a sua capacidade de conhecer e evoluir no mundo. Ora esse homem podia conhecer e modificar seu entendimento e posicionamento no mundo, ora ele já estaria pré-determinado para tal conhecimento e disposição nesse mundo. No entanto, todos identificavam a alma como local das ideias e do conhecimento.
É René Descartes (1596 d.C.), porém, que abriu espaço para o estudo dos diversos fenômenos corporais ao dividir o homem em duas naturezas e manifestações, duas substâncias diferentes, uma imaterial e outra material (dualismo cartesiano). Ele entendia que os fluidos ou espíritos animais estavam contidos no cérebro e que eles eram levados até esse local por meio de tubos, entrando em contato com o que ele denominava de res cogitans — coisa pensante. A parte material, o corpo, era denominado de res extensa — coisa externa. Assim, Descartes desenhava a possibilidade da existência do cérebro humano como “coisa pensante”, salientando a crença em um homem pautado pela razão como elemento essencial.
Mais tarde, o filósofo John Locke (1632 d. C.), empirista, afirmou que, ao nascer, a alma humana era uma “tábula rasa”, uma folha de papel em branco; dessa maneira, o conhecimento viria com a vivência, da experiência ou das operações internas da própria mente e não das deduções ou especulações, podendo ser esse conhecimento dividido em sensação e reflexão (método empírico). Essa mente teria como conteúdo as relações que ela estabeleceria entre as sensações e as reflexões. O conhecimento dava-se, assim, por meio da mente.
Nos anos seguintes, outros filósofos continuaram os estudos sobre a condição humana e depararam-se com os avanços científicos a respeito do funcionamento cerebral. Na década de 1990, a filósofa canadense Patrícia Churchland dedicou-se a traçar uma interface entre a neurociência e a filosofia, salientando a importância de entender a mente humana a partir do cérebro.
Nesse mesmo período, a neurociência começou a transitar com maior densidade no meio científico. Dessa maneira, mostrou-se capaz de explicar a dependência presente entre os processos de pensamento e o funcionamento cerebral, comprovando que somos formados por fatores genéticos e pela influência do meio.
O cérebro que comanda a vida
Nos anos de 1990, a neurociência ganhou força com a chegada das novas tecnologias de imagem cerebral, as quais permitiram a visualização da atividade cognitiva no interior do encéfalo humano. Foi possível perceber que o conhecimento se dá por meio das conexões neurais, que, ao acessarem os conhecimentos já armazenados no cérebro, criam conexões com determinado sentido ao sujeito, se consolidando na memória e se transformando em aprendizagem.
Ao nascer, em condições consideradas de normalidade, o sistema nervoso central humano apresenta uma formação voltada à interação com o meio externo em que esse sistema se insere. Dessa maneira, inicia-se um processo de aprendizagem em que o indivíduo, ao observar os acontecimentos externos e ser estimulado por informações diversas, começa a formar seu conectoma neural, ou, dito de outro modo, seus impulsos nervosos, combinados com determinadas substâncias químicas produzidas pelo organismo, as quais movimentam uma rede de neurônios que se conectam por intermédio de seus dendritos, permitem que as diversas informações sejam decodificadas e direcionadas para regiões e funções específicas. A cada novo estímulo informativo essa rede neural amplia-se e conhece mais o meio onde vive, o que permite formas de adaptação.
Entretanto, o funcionamento cerebral não ocorre de forma igual para todos. Apesar de o mecanismo de aprendizagem funcionar basicamente com a mesma sequência, cada indivíduo percebe a realidade de uma forma única. No momento em que um estímulo chega ao sistema nervoso central humano, inicia-se uma procura imediata de informações apreendidas anteriormente que possam se relacionar com a informação nova e atribuir-lhe um sentido, formando um circuito novo ou ampliado por informações recentes. Há uma necessidade cerebral constante em estabelecer relações com o que vemos, ouvimos, lemos, observamos ou, simplesmente, vivenciamos, na tentativa de identificarmos se a aprendizagem nova poderá ser útil ou não para a sobrevivência na Terra.
Ocorre que, nem sempre, nossa sensibilidade aliada à percepção é capaz de captar todos os estímulos externos pertinentes a um determinado fenômeno, pois acabamos por captar os que se mostram mais relevantes individualmente, o que faz com que tenhamos uma percepção falha da realidade. Cada indivíduo tem a sua percepção de um fenômeno; mesmo que uma multidão veja o mesmo acontecimento, ele será registrado pelo cérebro de cada um de acordo com suas memórias, suas vivências anteriores e seu histórico de vida. Cada um tem um conectoma único, fruto da sua percepção de mundo, também única.
Dentro desse mecanismo complexo de percepção de mundo, há os comportamentos intencionais e inconscientes, que ocorrem sem que a consciência tenha tempo de atuação e de direcionamento. No entanto, há também os comportamentos intencionais e conscientes, os quais, na maior parte do tempo, convivem muito bem, cada um ao seu tempo e espaço.
Alguns comportamentos são seguidos de movimentos reflexos ou voluntários. No caso dos reflexos, referem-se a respostas reflexas do corpo, a estímulos sensoriais não treinados, quase próprios da natureza humana. Já os voluntários dependem da concordância do indivíduo para acontecerem e nem sempre são controlados pela consciência, mas precisam de sua “permissão”.
Cada indivíduo, considerando seu histórico de vida, suas memórias e sua aprendizagem, é capaz de montar mentalmente circuitos padrões, que são acionados em resposta a situações diversas, formando um repertório comportamental específico para cada situação.
O que induz um comportamento?
Somos seres emocionais e, a partir da significação de nossas memórias, sentimos o mundo e reagimos a ele. Todavia, antes de escrever mais sobre essa constatação humana, é preciso diferenciar emoção de sentimento.
Emoção é comportamento, é a resposta do corpo para situações de estímulo ambiental com relevância emocional. Já o sentimento é a experiência que acontece na mente sobre o que ocorre no corpo em situação de emoção, atribuindo sentido àquela vivência emocional.
Como exemplo, podemos pensar na situação de ter de enfrentar uma discussão com a pessoa amada, aquela discussão inevitável, dolorida; afinal, o amor está no ar. Há alguns aspectos físicos que surgem, como os batimentos cardíacos acelerados, os olhos arregalados, a aceleração dos pensamentos e o frio na barriga quando a pessoa chega e, finalmente, se aproxima a hora de “falar algumas verdades”. Todos esses aspectos são emocionais e comportamentais.
Enquanto isso, na mente das duas pessoas, ocorre a vivência do momento. Seu desenrolar dá-se em um sentido único para cada um dos indivíduos envolvidos na discussão, os quais serão influenciados pelas memórias e pelo histórico de vida de cada um. O sentimento da situação vivida está, assim, sendo desenhado, para tornar-se memória e, talvez, mais um circuito neural que será acionado quando uma situação parecida ocorrer novamente ou apenas for lembrada.
O sistema nervoso central é complexo e responsável por várias funções da vida humana. No caso das emoções e dos sentimentos, ressalto os circuitos límbicos, localizados mais ao centro do cérebro humano, os quais são responsáveis pela ativação do sistema nervoso autônomo, que, além de incitar o comportamento exemplificado anteriormente, atua sobre os músculos do esqueleto, inclusive nos localizados no rosto humano.
O sistema límbico comporta uma série de circuitos neurais, regiões e funções, tendo destaque três: o hipotálamo, executor da emoção; as amígdalas cerebrais, que orquestram as emoções; e o estriado, que atua na aquisição de hábitos. Trata-se de uma estrutura cerebral altamente implicada na manifestação de reações emocionais e na aprendizagem de conteúdo emocionalmente relevante. Há crescentes evidências apoiando a função da amígdala como uma das regiões cerebrais mais importantes para a ocorrência do comportamento agressivo em humanos.
O sistema límbico leva-nos a reagir de forma espontânea, acionando padrões comportamentais gravados em nosso cérebro ao longo da vida e que nem sempre combinam com o que realmente desejamos que ocorra. Contudo, há momentos em que a situação vivida é totalmente nova e não se encaixa nos padrões de acionamento automático. Desse modo, será preciso parar e pensar de forma consciente. Nesses casos, entra em cena a região cerebral que nos diferencia de todas as espécies da Terra, capaz de impulsionar a realização das mais incríveis invenções: o córtex pré-frontal cerebral.
O ato de planejar as ações diárias, pensar antes de falar, controlar o comportamento impulsivo, ser criativo, reflexivo, manter a memória de curta duração ativa para não perder o foco e a atenção, além da capacidade de pensar no próprio pensar, são funções cerebrais próprias da espécie humana, que são capazes de dialogar com nosso sistema límbico e com as demais funções do sistema nervoso. Essas funções são conhecidas como “funções executivas” e estão concentradas no córtex pré-frontal cerebral. Todavia, essas funções precisam de treino, estímulo externo frequente, consistente e planejado para seu desenvolvimento pleno. Sua funcionalidade, aliada ao funcionamento cerebral como um todo, determina o comportamento humano e o diferencia da espécie animal.
Para que um indivíduo consiga estar no mundo de forma harmoniosa e reúna condições responsáveis de convivência social e humana, é preciso um “diálogo” cerebral constante entre as emoções — concentradas na funcionalidade equilibrada do sistema límbico — e o córtex pré-frontal cerebral — responsável pelos pensamentos que consideram os aspectos racionais da situação —, além de regular as emoções morais: indignação, compaixão, embaraço e vergonha.
Ocorre que a região do córtex pré-frontal cerebral não nasce “pronta para uso”; ela amadurece com o passar do tempo. Seu amadurecimento dá-se em média até os 25 anos de idade; antes disso, o indivíduo tende a reagir apoiando-se no sistema límbico, em outras palavras, é um ser movido pelas emoções.
Considerando o caminhar reflexivo desenvolvido até o momento, podemos entender que o indivíduo reage a partir de um sistema nervoso central, o qual é construído ao longo de sua vida, integrado ao meio em que ele vive. Dependendo da idade cronológica, esse indivíduo pode responder com comportamento impulsionado por um cérebro com mais influência emocional ou não. Além disso, a quantidade, a qualidade e o direcionamento dos estímulos ao longo da vida podem determinar a robustez das conexões cerebrais entre o córtex pré-frontal e o sistema límbico, além de determinar as escolhas morais.
Essas constatações científicas já influenciam alguns sistemas de justiça criminal ao redor do mundo. A Suprema Corte dos Estudos Unidos da América (EUA), por exemplo, já considerou inconstitucional a sentença de prisão perpétua sem liberdade condicional para jovens, por entender que adolescentes e adultos usam diferentes partes cerebrais para controlar o comportamento.
Diante de tal reflexão, em primeira análise, é possível arriscar a afirmação de que o ato de corrupção, como comportamento, é aprendido ao longo da vida e pode ser resultado de um sistema nervoso central ainda em amadurecimento; de um cérebro com uma comunicação frágil entre o córtex pré-frontal e o sistema límbico; ou, ainda, de um conectoma robusto, amadurecido, consequência de uma aprendizagem que não levou em consideração aspectos emocionais importantes, como empatia, cooperação e relacionamento interpessoal.
Admitimos que, às vezes, tomamos decisões precipitadas em resposta aos nossos sentimentos. No entanto, curiosamente, a emoção desempenha um papel em todas as nossas decisões, mesmo as morais. Na verdade, sem emoção, nossa capacidade de tomar decisões sensatas é prejudicada. (KANDEL, 2020, p. 166).
Nossos julgamentos morais são esculpidos por nossas emoções inconscientes, que são acionadas de acordo com os diferentes arranjos cerebrais humanos. Além da experiência de vida de cada um, das memórias e do meio em que vive, há uma formação genética única a cada pessoa. Os genes, o ambiente e a sua interação podem prejudicar ou auxiliar seu desenvolvimento cerebral, o seu aprendizado e o seu comportamento.
O papel da genética
Os genes são segmentos que fornecem às células do corpo instruções de como formar novos organismos e são transmitidas de geração em geração, comunicando as instruções aos descendentes. Aproximadamente metade dos genes humanos estão ativos no cérebro. Em geral, o processo de replicação dos genes ocorre de forma equilibrada, mas, quando há uma anomalia no processo, surge alguma mutação que pode resultar em mau funcionamento, comprometendo alguma estrutura funcional celular e ocasionando distúrbios. No caso do cérebro, esse descompasso pode comprometer algumas conexões neurais e regiões, sendo capaz de afetar a funcionalidade cerebral e, consequentemente, o comportamento.
O processo de ativação dos genes considera a interação das moléculas, dentro das células, com suas vizinhas celulares e com o ambiente externo do organismo. Segundo Kandel (2020), é possível dividir as doenças genéticas em dois grupos: as simples e as complexas. “Uma doença genética simples pode envolver a mutação de um único gene, enquanto uma doença genética complexa pode envolver vários genes e também fatores ambientais” (KANDEL, 2020, p. 17).
Entre os transtornos psiquiátricos que resultam em comportamentos, por vezes, agressivos ou de desordens morais, estão o transtorno bipolar, a depressão, a esquizofrenia e a demência frontotemporal. Alguns são mais perceptíveis ao olhar humano; já outros, como a esquizofrenia, são mais difíceis de identificar até que ocorra algum surto, com consequências, por vezes, desastrosas. Há, ainda, um distúrbio emocional muito recorrente no meio criminal — a psicopatia. Psicopatas, na maioria dos casos, apresentam comportamento antissocial e ausência de empatia com outras pessoas, agindo deliberadamente para parecerem normais aos olhos dos outros.
Esses cérebros transtornados, se combinados com ambientes sociais hostis, de poucos ou inadequados estímulos cognitivos, e expostos a exemplos imorais, certamente terão seu desenvolvimento cerebral já prejudicado, agravado.
Há escolha?
As escolhas existem, são realizadas a todo momento, porém estão condicionadas ao arranjo cerebral de cada indivíduo, que obedece a um circuito neural poderoso chamado “sistema de recompensa do cérebro”, responsável por emoções entendidas como positivas e pela antecipação de possíveis recompensas. Seu desencadeador químico é um neurotransmissor conhecido como dopamina.
A dopamina é liberada no interior do cérebro pela via mesolímbica[2] e age diretamente nas regiões reguladoras das emoções e no córtex pré-frontal cerebral. Quando liberada em altas dosagens pelo cérebro, impulsiona comportamentos que vão desde ações inconscientes de busca imediata do prazer, até a instalação de comportamentos viciantes. A possibilidade de haver alguma recompensa ao final de um comportamento ajuda na formação de hábitos.
A liberação de dopamina não apenas cria uma sensação de prazer, mas também nos condiciona. O condicionamento, como sabemos, cria uma memória de longo prazo que nos permite reconhecer um estímulo na próxima vez que nos deparamos com ele e responder de modo adequado. (KANDEL, 2020, p. 178).
Essa dependência de um prazer, provocado por determinado comportamento, pode transformar-se em um distúrbio compulsivo, como os relacionados aos alimentos em excesso, aos jogos de azar, ao sexo em demasia e à busca ilimitada por dinheiro.
Transportando essa constatação científica para o tema central deste texto, é possível estabelecer uma relação entre o sistema de recompensa cerebral e a ação corrupta, na qual o corruptor, ao beneficiar-se com determinada quantia financeira, posição social ou fama, sente prazer imediato, anulando a comunicação equilibrada com seu córtex pré-frontal cerebral, que, se amadurecido, poderia ponderar a situação e impedir a ação corrupta. Conceitos como empatia, cooperação, ética e moral não encontram espaço em um cérebro tomado por descargas de dopamina.
É fato histórico que a corrupção esteve presente durante toda a narrativa humana no planeta Terra. Em um movimento cíclico, esteve em evidência, ou em baixa, mas sempre se fez presente no imaginário humano. Biason e Livianu (2019, p. 11), ao escreverem sobre a corrupção na história brasileira, salientam que “[…] ora os regimes políticos e as sociedades assumem formas de comportamento eticamente corretas, ora se jogam na ardilosa apropriação do alheio (público ou privado)”.
Praticar ou não atos corruptos é uma escolha que parece depender do amadurecimento cerebral do indivíduo, do meio em que ele vive e de sua condição humana. O embrutecimento do ambiente social, a ausência de oportunidades e a hostilidade humana podem representar gatilhos cognitivos para o aparecimento de comportamentos relacionados à corrupção. A Professora Dra. Branca Ponce (2002), ao escrever sobre as questões que envolvem a condição humana, afirma:
Quanto mais carências têm os indivíduos, mais eles se embrutecem. No limite, quando lhes falta o essencial, a sua humanidade corre o risco de regredir ao puro estado de animalidade. O seu grau de consciência e liberdade é, portanto, diretamente proporcional ao seu bem-estar material, físico, cultural, emocional e espiritual. (PONCE, 2002, p. 18).
Em cenários humanos embrutecidos, algumas pessoas de cérebros comprometidos acabam encontrando desculpas para um comportamento corrupto, como se ele fosse a única forma de sobrevivência. Após as primeiras ações corruptas, sem possibilidade de punição e tendo como resultado a sensação do prazer buscado, o ciclo compulsivo tem início e a corrupção passa a ser praticada e expandida, criando uma classe social apartada da realidade e beneficiada pelo embrutecimento da classe menos favorecida socialmente.
Enquanto houver uma educação fragilizada, uma cultura transgressora sem punição, a ausência de transparência dos gastos públicos e o descumprimento das leis, haverá uma cultura da corrupção sendo ampliada e se instalando em cérebros cada vez mais fragilizados e fracos cognitivamente.
Referências
BIASON R.; LIVIANU R. A corrupção na história do Brasil. São Paulo: Mackenzie, 2019.
BOCCHI, R. M. B. Há corrupção na Educação? Relatos daqueles que vivem essa realidade no chão da escola pública brasileira. São Paulo: Appris, 2019.
BRASIL. Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília: Câmara dos Deputados, [1940]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 15 maio 2021.
JAPIASSÚ H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
KANDEL, E. R. Mentes diferentes. O que os cérebros incomuns revelam sobre nós. Barueri: Manole, 2020.
PONCE, B. J. O humano, lugar do sagrado. São Paulo: Olho d’Água, 2002.
SUTHERLAND, E. H. Principles of criminology. Chicago: J. B. Lippincott, 1939.
[1] Art. 317 do Código Penal — Corrupção Passiva; Art. 333 do Código Penal — Corrupção Ativa (BRASIL, 1940).
[2] Malha neural de comunicação entre o sistema límbico e o córtex pré-frontal cerebral que coloca os neurônios produtores de dopamina em posição de transmitir amplamente as informações reconhecidas como fontes de prazer e recompensa.