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A quem importam as araras?

A quem importam as araras?

“A terra não pertence ao homem, é o homem que pertence à terra (…). Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra”. (Cacique Seatle, 1854)

Há tempos quero escrever sobre isso. Há um casal de lindas araras azuis de peito amarelo – araras-canindé – que visita diariamente o meu “quintal”[1]. Para aqueles que nunca as viram de perto, assevero, araras são aves magníficas, exuberantes e um bocado barulhentas. Tagarelam umas com as outras enquanto voam, enquanto pousam, enquanto comem e até mesmo quando se preparam para dormir. Aqui em casa sua sinfonia de “cra-cras” se soma à de bandos de maracanãs, papagaios e periquitos, dando vida às minhas manhãs.

Essas, entretanto, não são as únicas aves silvestres por aqui. Há também curicacas, carcarás, pica-paus do campo, mutuns-de-penacho, corujas-buraqueiras, quero-queros, tucanos-toco e outros. É maravilhoso ter toda essa passarada à altura dos olhos.

Essas aves, contudo, não são como os pardais, os corvos ou os pombos-domésticos, pássaros de longínqua adaptação ao meio urbano. Tucanos, araras, curicacas são animais silvestres, não urbanos. Se estão a viver na cidade, lutando para se adaptar a um ambiente de elevada antropização, é porque seu habitat natural foi de alguma forma alterado.

A expansão urbana da capital federal do Brasil tem parte relevante no processo de migração dessas aves. Prevista para abrigar cerca de 500 mil moradores, Brasília conta hoje com mais de 2.8 milhões de habitantes, que ocupam uma área ao menos 30 vezes maior que a ocupada originalmente, em 1960[2]. Apesar de planejada, a capital federal do Brasil avança desordenadamente sobre o Cerrado, bioma da região, forçando o deslocamento da fauna silvestre para dentro da área urbana.

O Cerrado, segundo maior bioma do Brasil, constitui-se na savana mais biodiversa do mundo, abrigando milhares de espécies animais e vegetais[3]. Tendo sua formação inicial datada da era Cenozóica (40 milhões de anos atrás), o Cerrado brasileiro ocupa mais de 2 milhões de km2 (1/4 do território nacional) e é de crucial importância hídrica para o país.

“Conhecido como o “berço das águas” ou a “caixa d’água do Brasil”, o Cerrado abriga oito das doze regiões hidrográficas brasileiras e abastece seis das oito grandes bacias hidrográficas do Brasil (Amazônica, Araguaia/Tocantins, Atlântico Norte/Nordeste, São Francisco, Atlântico Leste e Paraná/Paraguai).

Além disso, é no Cerrado onde estão localizados três dos principais aquíferos do país: Bambuí, Urucuia e Guarani.

A contribuição hídrica do Cerrado para a vazão da bacia do Paraná chega a 50%; à bacia do Tocantins chega a 62%; e a 94% da bacia do São Francisco. O bioma Pantanal é totalmente dependente da água do Cerrado e grande parte da energia consumida no Brasil é gerada com as águas do Cerrado” [4].

A vegetação do Cerrado é adaptada às variações de umidade, ao solo pobre em nutrientes e aos incêndios naturais comuns no bioma. As árvores e os arbustos que a tipificam são dotados de raízes profundas e emaranhadas, responsáveis por sugar a água de lençóis freáticos durante os longos períodos de estiagem e devolvê-la na época das chuvas. Essa estratégia evolutiva dá ao Cerrado a alcunha de “bioma subterrâneo”[5].

O seco bioma do Cerrado guarda muitos encantos:

As paisagens do Cerrado, especialmente suas chapadas e chapadões, são um espetáculo único; igual às suas cascatas, cachoeiras e corredeiras; seus “buracos de araras”; suas veredas de buritis; seus rios de água cristalina e seus grandes rios piscosos e navegáveis, como o Araguaia ou o Tocantins. A vegetação do Cerrado pode não ser tão alta e frondosa como a da Amazônia ou da Mata Atlântica, mas, para quem deseja olhá-la, é de uma beleza especial, cheia de cores cambiantes em flores e folhas, com árvores estranhamente retorcidas. A fauna é, evidentemente, menos espetacular do que a do Pantanal, mas, se for preservada, seria bem mais fácil de observar do que a da Amazônia. De qualquer modo, suas 850 espécies de aves são atrações para qualquer birdwatcher do mundo” [6].

O ecoturismo tem demonstrado franco desenvolvimento na região, sobretudo nas áreas onde se concentram grandes atrativos naturais, como as chapadas dos Veadeiros, dos Guimarães e Diamantina. Seu papel, contudo, é ainda pouco expressivo frente à dimensão econômica do agronegócio, modelo de exploração da terra baseado na produção de commodities agropecuárias em grande escala.

A marca dessa exploração vai muito além de um desmatamento monumental, da ordem de 1 milhão de hectares por ano, que já devastou cerca de 50% do bioma e segue frenético, sobretudo na região chamada Matopiba, formada pelo encontro dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia[7].

Na esteira do modelo de agronegócio operado no Cerrado brasileiro encontram-se os incêndios florestais criminosos provocados anualmente para abertura de pasto, que afetam as áreas protegidas e matam sistematicamente milhares de espécimes da fauna e da flora locais; a contaminação das águas, do solo e dos alimentos por agrotóxicos agressivos[8], com impacto direto sobre a fauna e as populações mais sensíveis: indígenas[9], quilombolas, agricultores familiares, quebradeiras de coco babaçu, veredeiros etc.; e a grilagem de terras com expulsão das populações tradicionais, que há tempos imemoriais vivem em equilíbrio com o bioma, preservando-o da destruição.

Ao desmatar o Cerrado, com sua lógica predadora, o agronegócio não destrói apenas as milenares palmeiras de buritis e babaçus que adornam indiscretamente as veredas dos sertões guimarães[10], outrora o lar das araras que me visitam o quintal; nem tampouco as savanas aos pés dos chapadões, onde o imponente lobo-guará avizinha-se a exuberantes cachoeiras.

Fotos, respectivamente: Luiz Carlos Rondini, acervo pessoal e Marcelo Camargo, Agência Brasil[11].

A exploração extensiva da terra para produção de commodities — algodão, milho, soja, gado etc. — compromete, também – e sobretudo –, o equilíbrio hidrológico do país, amplificando os efeitos de fenômenos climáticos extremos, como ondas de calor, tempestades ou estiagens prolongadas. Se é certo que o Brasil depende da Amazônia e seus rios voadores[12] para manter seu ciclo natural de chuvas, é igualmente certo que a floresta amazônica depende do sistema hídrico do Cerrado — suas nascentes e reservatórios — para manter seu ciclo hidrológico em equilíbrio[13]. Trata-se de uma delicada engrenagem de biomas interdependentes, que vem sendo brutalmente comprometida pela rápida devastação de ambos — Cerrado e Amazônia — por esse modelo irracional de exploração econômica do solo.

A desertificação do Cerrado[14] não é nem de longe um problema menor para o planeta, que hoje volta seus maiores esforços preservacionistas para a Amazônia, vista ao longe como um bioma isolado. É urgente que o mundo tenha em conta que o fim do Cerrado pode representar o fim da própria floresta amazônica e da função por ela cumprida na regulação do carbono em nossa atmosfera.

Neste planeta azul — que a propósito não é plano —, o exílio de lindas araras entre os edifícios da cidade grande é coisa séria e diz respeito a todos nós.

Área desmatada para plantio comparada ao Cerrado virgem. Imagem sem autoria, retirada de https://www.poder360.com.br/opiniao/a-dupla-riqueza-do-cerrado-brasileiro, consultada em 03 de abril de 2024.


[1] Moro na cidade de Brasília, em um edifício rodeado de árvores a que chamo de quintal.

[2] CHELOTTI, Giancarlo Brugnara, SANO, Edson Eyji Sano. Setenta anos de ocupação urbana da capital do Brasil: padrões, vetores e impactos na paisagem (2021). Brasília: Companhia de Planejamento do Distrito Federal (CODEPLAN), Texto para discussão, n° 73, p. 13. Fonte: https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/07/TD-73-Sessenta-anos-de-ocupacao-urbana-da-capital-do-Brasil-padroes-vetores-e-impactos-na-paisagem-2021.pdf, consultado em 23 de março de 2024.

[3] Fonte: https://ipam.org.br/o-que-e-cerrado-caracteristicas-biodiversidade-e-desmatamento/?gad_source=1&gclid=CjwKCAjwkuqvBhAQEiwA65XxQD7Q3S2olWDLa6fLEsQoLOE3apwVRt7AyjInmfu7OG9hA71zgvT1GBoC__EQAvD_BwE, consultado em 24 de março de 2024.

[4] Fonte: https://redecerrado.org.br/nossa-atuacao/defesa-do-cerrado/#:~:text=Conhecido%20como%20o%20%E2%80%9Cber%C3%A7o%20das,Leste%20e%20Paran%C3%A1%2FParaguai), consultado em 29 de março de 2024.

[5] Fonte: https://www.aulatica.com.br/bioma-cerrado-caracteristicas-clima-solo-vegetacao-fauna-e-mais/, consultado em 24 de março de 2024.

[6] Fonte: https://oeco.org.br/colunas/16333-oeco-10691/, consultado em 24 de março de 2024.

[7] Fonte: https://www.aulatica.com.br/bioma-cerrado-caracteristicas-clima-solo-vegetacao-fauna-e-mais/, consultado em 24 de março de 2024.

[8] O uso de agrotóxicos (ou defensores agrícolas, como preferem os produtores rurais) no Brasil, já elevado, foi acelerado durante os quatro anos do governo do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), com liberação de uso de 546 novos pesticidas em média anualmente, em um total de quase 2.200 no decorrer de quatro anos. O agrotóxico mais utilizado no país, o glifosato, responsável por mais 60% de todo o consumo de defensivos do país, possível agente cancerígeno, foi encontrado no leite materno de mulheres que não viviam em zona rural ou trabalhavam diretamente com o produto, em uma forte sugestão de que a contaminação das águas afeta diretamente toda a população. A esse respeito, vide: https://repositorio.unesp.br/items/e4b2a1eb-b105-430c-af08-200cae2d82e2, consultado em 24 de março de 2024.

[9] Há mais de 80 povos indígenas vivendo no Cerrado brasileiro, que representam a resistência à devastação do Cerrado. Em recente viagem de Brasília ao Estado do Mato Grosso tive a oportunidade de ver in loco a importância das reservas indígenas para o bioma. Durante mais de 500 km, a perder de vista, só havia vegetação nativa onde se lia “Reserva indígena” ou “Aldeia indígena”. Ao redor desses poucos enclaves, a paisagem era lunar: o chão limpo, sem nenhuma vegetação, preparando-se para produzir uma nova safra de algodão ou milho ou outra commoditie qualquer. Uma visão devastadora.

[10] ROSA, João Guimarães (2019). Grande sertão: veredas – “O diabo na rua, no meio do redemoinho…”. 22a ed. São Paulo: Companhia das Letras.

[11] Fonte: https://marsemfim.com.br/cerrado-ameacado-com-a-diminuicao-do-parna-da-chapada-dos-veadeiros/#google_vignette, consultado em 28 de março de 2024.

[12] “Os rios voadores são “cursos de água atmosféricos”, formados por massas de ar carregadas de vapor de água, muitas vezes acompanhados por nuvens, e são propelidos pelos ventos. Essas correntes de ar invisíveis passam em cima das nossas cabeças carregando umidade da Bacia Amazônica para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil”. Fonte: https://riosvoadores.com.br/o-projeto/fenomeno-dos-rios-voadores/, consultado em 23 de março de 2024.

[13] Mais de 3.400 nascentes do Cerrado drenam água para rios da Amazônia. Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2023/12/6668202-preservar-a-amazonia-e-degradar-o-cerrado-e-uma-estrategia-suicida-alerta-isabel-figueiredo.html, consultado em 23 de março de 2024. Vide também https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-03/berco-das-aguas-cerrado-precisa-de-protecao-para-garantir-abastecimento-no#:~:text=Especialistas%20consideram%20o%20Cerrado%20como,de%20importantes%20rios%20do%20continente e https://www.bbc.com/portuguese/brasil-39391161, consultados em 23 de março de 2024.

[14] Vide: https://ipam.org.br/desmatamento-do-cerrado-segue-em-alta-apesar-de-queda-em-julho-aponta-sad-,cerrado/?gad_source=1&gclid=Cj0KCQjw2PSvBhDjARIsAKc2cgOCD25OSwohfNfqC5_ExhozSVGI7EOISM0NPFPghKeY1qYyv1cQaE0aAhnKEALw_wcB, consultado em 24 de março de 2024.

*Foto de capa: Anselmo d’Affonseca, retirada de https://acariquaras.blogspot.com/2016/11/araras-caninde.html, consultado em 03 de abril de 2024.

**Agradecimento especial ao fotógrafo Luiz Carlos Rondini (https://www.wikiaves.com.br/perfil_lcr) por ter cedido gratuitamente algumas das fotografias que ilustram este artigo.

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