A ideia de férias está tão enraizada na mentalidade coletiva que raramente se pensa sobre o assunto. Ora, foi precisamente durante um período de preparação das próximas férias que o autor deste texto cogitou sobre o conceito.
O período de férias laborais está consagrado em boa parte dos países pelo mundo, oscilando entre a obrigatoriedade e a habitualidade. O código do trabalho em Portugal estabelece o direito a 22 dias úteis de férias, o que corresponde à média europeia. Nos EUA as férias não são obrigatórias, mas adotam-se 10 dias úteis para descanso dos trabalhadores.
A nível escolar, os períodos de férias são mais amplos. Em Portugal e em outros países do hemisfério norte as férias escolares decorrem entre junho e setembro. No Brasil e noutras paragens do hemisfério sul os estudantes descansam entre dezembro e janeiro. As férias escolares têm várias divisões e terminologias: férias grandes, férias de Natal, férias da Páscoa, etc.
A noção de férias existe por contraponto à de trabalho/escola, ou seja, é assumido que a um período de trabalho/aulas, deve suceder um de descanso. Visto que a atual organização do sistema produtivo é relativamente recente, tendo surgido após a Revolução Industrial, deve concluir-se que as férias nem sempre foram aquilo que são hoje em dia.
O conceito de férias pagas foi instituído na Inglaterra em 1871, por meio do “Bank Holidays Act”. Sendo um “bank holiday” celebrado a uma segunda-feira, os britânicos começaram a aproveitar o fim-de-semana prolongado para viajar a fim de usufruir do mar, do campo, e de outros ócios. No processo, emergiram os primeiros destinos turísticos, floresceu uma nova indústria, e desenvolveu-se uma cultura de alternar trabalho com descanso.
O surgimento das férias pagas foi importante, mas deve salientar-se que a deslocação para além das fronteiras das cidades era em si mesmo uma aventura, seja devido às dificuldades técnicas, seja aos custos elevados! As viagens por meios rodoviários e marítimos estavam destinadas aos com posses ou aos que partiam em busca de trabalho. Por exemplo, o Expresso do Oriente, inaugurado em finais do Século XIX, e ligando Londres a Constantinopla via Paris, apenas era acessível à aristocracia europeia e à burocracia milionária.
Ainda hoje em dia este comboio imortalizado num dos contos de Agatha Christie pratica valores únicos. Uma simulação num dos sites que vende bilhetes para o Expresso, rota Paris-Istambul, com saída às 11h30 do dia 20 de agosto de 2021, e chegada às 15h30 do dia 25, custa 17 mil euros por pessoa em cabine para dois. Estimado leitor, por este valor tem refeições com quatro pratos, assistência personalizada 24h por dia, visitas guiadas em Veneza e Budapeste, e receção com champanhe. Infelizmente, já não poderá ir nesses dias, pois as passagens estão esgotadas.
A título de curiosidade, uma passagem em primeira classe na viagem inaugural (e única) no fatídico Titanic, em 1912, custou £30 (cerca de €35), o que daria £3,300 (€3,800) em 2021.
Apesar destas evoluções assinaláveis, a revolução nas deslocações dar-se-ia com o automóvel, sendo dado o crédito principal a Henry Ford. O magnata não apenas revolucionou a produção em massa do automóvel, como também promoveu um aumento generalizado dos rendimentos das famílias, assim estimulando o consumo. Todavia, ainda seriam precisas algumas décadas para se desenvolver uma infraestrutura rodoviária capaz de levar as pessoas para longe das suas casas. A primeira autoestrada na Europa surgiu em Itália, em 1925, e nos anos 30 a Alemanha construiria centenas de kms de “autobahn”, provavelmente antecipando o conflito de 1939.
Um avanço importante surgiu com os voos comerciais. Os primeiros foram realizados com dirigíveis Zeppelin, no início dos anos 1900, mas seria com a banalização dos voos comerciais, nos anos 60, que surgiu a possibilidade de viajar de forma rápida e relativamente económica para destinos distantes. O mais recente salto em frente deu-se em finais dos anos 90, com o aparecimento das companhias aéreas de baixo custo e dos primeiros sites dedicados a viagens e turismo.
Do exposto resultam duas observações. A primeira revela que aquilo que a princípio é oneroso e acessível apenas a alguns, evolui para se tornar económico e alcançável à maioria. É verdade que algumas viagens ainda mantêm o perfil de luxo, para elites, mas seja por via rodoviária, ferroviária, marítima ou aérea, é hoje possível disfrutar de férias virtualmente em qualquer parte do mundo.
A segunda nota prende-se com uma mudança no conceito de férias. Se no início era sinónimo de afastamento do trabalho, para gozar um descanso, mais recentemente férias significa – quase implica – viajar para destinos longínquos, ou para viver experiências novas. Outra mudança curiosa deriva de uma crescente dificuldade em tirar férias sem pensar em trabalho. O leitor concordará que atualmente há muita gente que quando vai de férias, aporta algum trabalho no seu telemóvel e tablete; para estes, o corte com a esfera profissional tende a tornar-se mais difícil.
Estas duas observações são relevantes para se compreender o futuro das férias e viagens. O turismo espacial já é possível desde o início do século, com algumas empresas a oferecerem esses serviços. As viagens ainda custam em redor dos 20 milhões de dólares, mas são inúmeros os projetos para colocar turistas em órbita e ir mais além. Em julho de 2021 estão planeadas duas viagens para o espaço, ambas por empresas privadas: Virgin Galactic (que vai levar Richard Branson), e Blue Origin (que leva Jeff Bezos).
O turismo das profundezas dos oceanos também está em marcha, destacando-se um curioso destino na mira dos agentes: as ruínas do Titanic, que repousam a quase 4 mil metros de profundidade ao largo da Terra Nova. Fecha-se o ciclo temporal: o futuro viaja ao passado.
E falando em passado e futuro, viajar no tempo pode nunca ser possível, mas os avanços da realidade virtual e das simulações em computador são tão expressivos que poderão trazer nova revolução ao conceito de férias. Com efeito, já é possível visitar virtualmente a Grande Barreira de Coral ou o plateau central da Antártica, tudo amplificado com experiências quase reais do que é um mergulho nas tépidas águas australianas ou um passeio pela superfície branca do continente gelado. Naturalmente, sem sair do conforto do seu sofá.
É arriscar escrever que a ficção do filme “Total Recall” (1990), de Paul Verhoeven, está cada vez mais próxima de ser realidade, o que ilustraria o último passo em matéria de férias: aquelas em que uma pessoa tira férias de si própria, assumindo em sono induzido e controlado uma personalidade e uma vida diferentes daqueles que leva na realidade.
Referências:
2 respostas
Condenados que estamos, pelo menos pelos tempos mais próximos, a férias no espaço doméstico e a banhos de multidão limitados aos centros comerciais, ficamos sem saber para que servem as férias, a não ser para nos vermos infetados por uma letargia galopante – esse sim, o vírus mais pernicioso de toda esta pandemia
Estimado Fernando, aqui entre nós, se não vou de férias para longe em breve, dou em doido! O que seria, em si, uma espécie de férias, como o Nicholson nos Cucos. Mas preferia muito mais um qualquer Caicos do que os Cucos.