A integração da tecnologia e da inteligência artificial (IA) no setor da saúde tem redefinido profundamente os processos clínicos, especialmente em contextos de urgência e emergência. A tomada de decisão rápida, que é vital nestes ambientes, passou a contar com o apoio de sistemas computacionais capazes de analisar grandes volumes de dados em tempo real, sugerir diagnósticos e orientar condutas. Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre o papel da tecnologia e da IA como aliadas dos profissionais de saúde, com ênfase na enfermagem, no processo decisório imediato, sem negligenciar os riscos éticos, a autonomia clínica e a necessidade de capacitação adequada.
A tomada de decisão em saúde é tradicionalmente fundamentada em três pilares: conhecimento clínico, experiência prática e julgamento ético. No entanto, a crescente complexidade dos casos, a sobrecarga nos serviços e a necessidade de respostas céleres têm colocado em evidência os limites da cognição humana. É neste cenário que a IA surge como um recurso promissor. Ferramentas baseadas em machine learning, processamento de linguagem natural e algoritmos preditivos podem analisar sinais vitais, históricos clínicos, exames laboratoriais e padrões de comportamento, oferecendo recomendações em segundos (Topol, 2019).
A presença da IA em serviços de urgência tem sido particularmente relevante em áreas como a triagem inteligente, a deteção precoce de deterioração clínica e o apoio ao diagnóstico diferencial. Por exemplo, algoritmos integrados aos sistemas de monitorização podem prever paragens cardiorrespiratórias até uma hora antes de ocorrerem, permitindo intervenções preventivas (Rajkomar et al., 2018). Esta capacidade de antecipação transforma a gestão do risco e fortalece a segurança do doente.
Além disto, a IA permite superar limitações humanas como fadiga, viés cognitivo e esquecimento. Em ambientes de alta pressão, onde múltiplos doentes competem simultaneamente pela atenção da equipa, os sistemas de apoio à decisão clínica (CDSS) funcionam como assistentes silenciosos, fornecendo alertas e propostas baseadas em evidência. No entanto, é fundamental destacar que estes sistemas não substituem o profissional — ampliam as suas capacidades, desde que integrados de forma crítica, ética e contextualizada (Esteva et al., 2021).
Na enfermagem, a IA pode ser particularmente útil na priorização de cuidados, no registo automático de sinais e na gestão de cargas de trabalho. Aplicações móveis e dispositivos de wearable technology permitem que enfermeiros monitorem remotamente sinais vitais, detetem padrões de risco e tomem decisões fundamentadas em tempo real. Esta inteligência contextual pode libertar tempo para o cuidado direto e favorecer uma abordagem mais humanizada.
Contudo, a adoção acrítica da tecnologia traz riscos. A dependência excessiva de algoritmos pode reduzir o desenvolvimento do julgamento clínico, promovendo uma prática automatizada e tecnocêntrica. Além disto, há questões de transparência algorítmica: muitos sistemas operam como “caixas negras”, sem explicitar os critérios que fundamentam as recomendações. Isto levanta preocupações éticas sobre responsabilidade, erro e consentimento informado (Floridi et al., 2018).
Outra questão crítica é o viés algorítmico. Como os dados utilizados para treinar os sistemas de IA refletem realidades sociais marcadas por desigualdades, existe o risco de perpetuar discriminações — por exemplo, subdiagnóstico de mulheres ou populações racializadas. A construção ética da IA exige diversidade nas bases de dados, validação contínua dos sistemas e supervisão humana permanente.
A literacia digital dos profissionais de saúde torna-se, assim, uma competência essencial. Não basta saber operar os sistemas — é necessário compreender os seus limites, questionar as suas recomendações e manter uma postura crítica. Formações em ética digital, fundamentos da IA e pensamento computacional devem integrar os currículos da saúde, como já propõem o “AI Competency Framework for Health Professionals” da OMS e o “AI in Health Guidelines” da UNESCO (WHO, 2021; UNESCO, 2024).
Para que a IA seja uma aliada na tomada de decisão rápida, é também necessário um ambiente institucional que favoreça a sua integração. Isto inclui infraestruturas digitais seguras, interoperabilidade dos sistemas, protocolos de uso responsável e políticas de proteção de dados. Os gestores de saúde devem promover uma cultura de inovação crítica, onde a tecnologia não substitui o cuidado, mas o qualifica.
A experiência portuguesa em saúde digital tem evoluído com a criação da Estratégia Nacional para a Inteligência Artificial (2024), que prevê investimentos em IA aplicada ao diagnóstico precoce, à gestão de recursos e à segurança do doente. No entanto, os desafios de equidade territorial, interoperabilidade e resistência cultural ainda persistem. A investigação nacional aponta que, embora os profissionais reconheçam o potencial da IA, sentem-se pouco preparados para o uso diário (Martins & Lopes, 2024).
Neste contexto, o papel da enfermagem é estratégico. Enfermeiros estão na linha da frente da tomada de decisão, especialmente em situações de urgência e emergência. Integrar IA na sua prática pode significar mais tempo para cuidar, mais dados para decidir e mais segurança para atuar. Mas isto exige formação adequada, coautoria no desenho das ferramentas e valorização da dimensão ética do cuidado.
Em conclusão, a tecnologia e a inteligência artificial oferecem um potencial transformador para apoiar a tomada de decisão rápida em saúde. Mas o sucesso depende menos do que a máquina faz e mais de como os humanos a integram nos seus processos de cuidar. A decisão continua a ser humana — e deve sê-lo: lúcida, responsável e compassiva. A IA, bem integrada, pode ser a bússola que orienta sem conduzir, que apoia sem substituir, que amplifica sem silenciar o julgamento clínico. Na urgência do tempo e na precisão da escolha, a tecnologia pode ser aliada — se for também ética.
Referências Bibliográficas
Esteva, A., Robicquet, A., Ramsundar, B., Kuleshov, V., DePristo, M., Chou, K., … & Dean, J. (2021). A guide to deep learning in healthcare. Nature Medicine, 27(1), 24–29.
Floridi, L., Cowls, J., Beltrametti, M., Chatila, R., Chazerand, P., Dignum, V., … & Vayena, E. (2018). AI4People—An ethical framework for a good AI society: Opportunities, risks, principles, and recommendations. Minds and Machines, 28, 689–707.
Martins, T., & Lopes, F. (2024). Inteligência artificial em saúde: perceções de enfermeiros em contexto hospitalar. Revista Portuguesa de Enfermagem, 41(1), 55–70.
Rajkomar, A., Dean, J., & Kohane, I. (2018). Machine learning in medicine. New England Journal of Medicine, 380(14), 1347–1358.
Topol, E. (2019). Deep medicine: how artificial intelligence can make healthcare human again. Basic Books.
UNESCO. (2024). AI in Health Guidelines. Paris: UNESCO.
WHO – World Health Organization. (2021). Ethics and Governance of Artificial Intelligence for Health. Geneva: WHO.



