“Quando passar o estado de choque, será algo atroz!”, ou de como a ansiedade cinéfila provoca atropelos…

Se a trama de “Sirât” aprisiona o potencial desta obra em certas convenções narrativas, no que tange à temática da reconciliação e na lida lisérgica com os sentimentos de luto e perante as injustiças contemporâneas, soa muito problemático que o roteiro – escrito pelo próprio diretor, em parceria com o argentino Santiago Fillol, seu colaborador habitual – acate as justificativas pretensamente despolitizadas daqueles personagens, através do pretexto simplista de que “já estamos vivenciando o fim do mundo”, conforme eles dizem em reação à transmissão apocalíptica de uma emissora de rádio.

“Alguém tem que ficar e varrer isso daqui”: ainda sobre curtas-metragens e festivais!

Retomando a musicalidade que já adotara no extraordinário “Fantasma Neon” (2021, Premiado no Festival Internacional de Cinema de Locarno, entre outros) e em “Pássaro Memória” (2023), o carioca Leonardo Martinelli emociona-nos ao contar a história de um gari que não conseguiu uma troca de turno durante o Carnaval, já que ele queria acompanhar o desfile de blocos, pois isso faz com que ele relembre uma irmã falecida, que amava esta festividade. Numa interessante imbricação entre delírio e memória, este personagem, de nome Ângelo (Alexandre Amador), encontra um garotinho – também batizado com seu nome (interpretado por Miguel Leonardo), que pode ser ele na infância – que segura um livro, e tem a intenção de devolvê-lo. É a deixa para uma apaixonante execução coletiva da canção “Drão”, de Gilberto Gil, que faz uma participação especial no filme.

“Eu não sou criança! Eu nunca fui, nem mesmo quando eu era…”: das dificuldades de se condensar mais de cinco décadas de vida em duas horas de filme!

Interpretado de maneira intensa pelo pernambucano Jesuíta Barbosa, que reproduz com estudada maestria alguns cacoetes oculares e corporais do artista, Ney Matogrosso é mostrado, em “Homem com H” (2025, de Esmir Filho), como alguém que sempre quis ser livre, a despeito da extrema repressão de seu pai militar, Antônio (Rômulo Braga). Na infância, Ney é comumente espancado, mas irrita o pai por não chorar durante as surras. Expulso de casa, ele alista-se na Aeronáutica, a fim de superá-lo num campo familiar, mas logo será descoberto por causa de seu timbre vocal tão agudo quanto insigne. E, de maneira um tanto evasiva, mas assertiva em seu poder de síntese, acompanhamos as diversas fases musicais deste magnífico intérprete…

“Tente usar a roupa que estou usando/ Tente esquecer em que ano estamos”: acerca da imponência de um artista imortal!

“Luiz Melodia – No Coração do Brasil” (2024, de Alessandra Dorgan) é uma produção documental que respeita aquilo de mais notável na produção do artista titular, que é a sua originalidade. Chama positivamente a atenção o fato de não haver uma narração em ‘off’, proveniente de alguma figura de autoridade, com voz empostada: quem comenta os eventos de sua vida e carreira é o próprio Luiz Melodia [1951-2017], através de depoimentos antigos, magistralmente resgatados.

Sobre a importância de averiguar as benesses da literatura ‘pop’ [2/4]: “minha pele é preta para combinar com a cor de meus cartões de crédito”!

Para além de suas intencionais limitações distributivas – é um “filme de nicho”, voltado ao público adolescente –, “Um Ano Inesquecível: Outono” (2023, de Lázaro Ramos) escancara preconceitos indisfarçados do público pagante, que reclama da “infidelidade” do roteiro quanto ao texto original e que, a despeito das personalidades envolvidas, contribui para que o filme não seja tão visto quanto merece.

“Quando se muda o corpo, muda-se de sociedade; quando se muda a sociedade, muda-se de alma”: sob quais pretextos conseguimos extrair música da violência?

Dirigido por um cineasta que já foi contemplado com uma Palma de Ouro – pelo irregular “Dheepan – O Refúgio” (2015) – e que recebera, anos antes, outro prêmio relevante no mesmo festival – o Grand Prix por “O Profeta” (2009), que talvez seja a sua obra-prima –, “Emilia Pérez” confirma o talento inventivo de Jacques Audiard, sendo, desde já, um dos favoritos à indicação de Melhor Filme Internacional, no Oscar 2025. E não será nada imerecido: o filme é impressionante, na maneira como conjuga convenções do melodrama e do realismo policial mexicano com os exageros de um musical ‘pop’ e o discurso identitarista.

A atividade musical durante o reinado de D. João V      

O ensaio que agora dá corpo à leitura versa sobre os principais assuntos abordados pelos autores Cymbron (1994) e Kirkpatrick (2022) no tocante ao tema em epígrafe, nomeadamente a influência italiana na música portuguesa do século XVIII, a ópera, a música de tecla, os locais reservados ao espetáculo, e os compositores.            Destarte:O início do reinado […]

A poética de Saramago e a força da canção de intervenção

Por ocasião das comemorações do centenário do nascimento de José Saramago, a Galeria Anjos Teixeira, no Funchal, realizou na passada terça-feira, dia 30 de agosto, pelas 19h00, uma sessão intitulada “Saramago e a Música”, no âmbito do ciclo de conversas “De Saramago, o meu livro”. Importa recordar que esta proposta cultural integra o conjunto de […]

E quando o pretenso discurso antipropagandístico é também propagandístico, o que a gente faz? [observação: tudo o que fazemos é político!]

Fingindo ser uma realização norte-coreana contrabandeada internacionalmente, “Propaganda” (2012, de Slavko Martinov) serve-se de vasto material de arquivo para expor as limitações democrático-midiáticas ocidentais, a partir de uma crítica incisiva ao modelo imperialista de dominação cultural estadunidense. A fim de hipertrofiar o seu charme denuncista, não há créditos internos, de maneira que o mito da difusão clandestina da produção é reiterado…

“É complicado”, eles repetem: “a heroína alivia um pouco a dor, mas tudo volta depois, pior que antes”!

Conforme o próprio título deixa evidente, conheceremos um pouco dos percalços envolvendo a trajetória artística da cantora Billie Holiday [1915-1959], que faleceu aos 44 anos de idade, em decorrência de complicações da cirrose, após uma vida trágica e uso contínuo de opiáceos. Entretanto, conforme percebemos no mesmo título, a abordagem jornalístico-judicial sobrepuja-se aos demais aspectos biográficos, de modo que, mais uma vez, escolhe-se uma imponente personalidade negra como coadjuvante de sua própria história…

De quando a realidade nos invade, e algumas descobertas ritmadas progridem…

Surgido no curta-metragem confessional “Feio, Velho e Ruim” (2015) e interpretado pelo próprio Marcus Curvelo, Joder Oliveira Carvalho possui não apenas sobrenome, como também um Cadastro de Pessoa Física. E ele retorna em mais de um filme, de modo que protagoniza, como elemento de uma disrupção psicanalítica, o primeiro (e ótimo) longa-metragem do diretor, “Eu, Empresa” (2021, co-dirigido por Leon Sampaio), que diagnostica brilhantemente as aflições socioeconômicas da contemporaneidade…

Astor Piazzolla – Centenário do músico que revolucionou o tango

No centenário do seu nascimento, Buenos Aires presta todas as homenagens possíveis a um argentino criado em Nova York que reinventou a música popular portenha e a fez ecoar pelo mundo – Astor Piazzolla. Nascido em Mar del Plata, a 11 de março de 1921, foi um garoto argentino pobre e um pequeno imigrante em Nova York, com […]

Celina Pereira: legado em Cabo Verde e na lusofonia

A cantora e escritora cabo-verdiana Celina Pereira, nascida na Boavista, criada em São Vicente e radicada em Portugal há largas décadas deixa um legado muito ligado à morna de que foi acérrima defensora para a sua classificação no ano passado como património imaterial da Unesco. A artista morreu na última quinta-feira em Portugal aos 80 […]

A vontade de suicídio às vezes é tédio inassumido: ouçamos música, portanto!

Composto por apenas nove faixas, o novo álbum de Adriana Calcanhotto reflete bem o espírito de resistência íntima em meio ao confinamento: foi gravado em menos de dois meses e composto de maneira quase automática. Segundo entrevistas, a cantora já acordava inspirada para escrever as canções, incluindo-as no álbum à maneira que foram surgindo. E ela merece aplausos por isso: o disco é ótimo!

“Não é loucura, é dor!”: o presente é música de resistência!

Dirigido pelo jovem realizador Fradique, “Ar Condicionado” (2020) consegue a proeza de adequar elementos dos gêneros musical e ficção científica à realidade cotidiana de Luanda, capital de Angola. O estilo do roteiro possui o elã fantástico das narrativas caras a escritores como José Saramago e Mia Couto, mas sob uma perspectiva assaz pessoal, visto que o país é marcado por duradouras guerras civis, que ainda deixam máculas profundas no dia a dia dos habitantes.

O perfume confessional de um gênio: ou quando o amor ousa cantar muito mais que o nome antes não dito!

Em 15 de maio de 2020, dois dias antes do trigésimo aniversário do dia Internacional Contra a Homofobia, o músico norte-americano Perfume Genius lançou o seu quinto álbum de estúdio “Set My Heart on Fire Immediately” [em tradução livre, “ponha meu coração no fogo, imediatamente”], e cada uma das treze faixas deste extraordinário álbum serve como afirmação positiva da comemoração supramencionada.

Os mantos amarelos da depressão (in)adaptiva: a (re)existência identitária

Em novembro de 2019, a publicação francesa Cahiers du Cinéma divulgou um impactante editorial sobre filmes que abordam de maneira imersiva a tendência revoltosa característica dos tempos hodiernos. E, dentre os filmes elogiados pela revista, encontramos “Sinônimos” (2019), dirigido pelo cineasta israelense Nadav Lapid e premiado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim do ano em que foi lançado. Merecidamente, aliás!