“Ela morreu bem velhinha, mas lúcida — e ainda contava histórias”… (uma resenha ensaística)


Chamamos a atenção para a produção sergipana “Donas da Terra” (2025, de Ana Marinho), que dá continuidade àquilo que foi mostrado em “Velho Chico, a Alma do Povo Xokó” (2024, de Caco Souza), que concorreu no Festival de Cinema de Gramado, em 2024. Neste filme, fala-se sobre a perene luta dos indígenas que vivem na Ilha de São Pedro, no município de Porto da Folha, localizado em Sergipe, menor Estado do Brasil, onde vivem os habitantes do povo Xokó, infelizmente negados, por muito tempo, em seu direito elementar à identidade e à terra nativa. Neste curta-metragem, acompanhamos os depoimentos de mulheres que, segundo a sinopse, “ao retornarem às lembranças do período de lutas pelo território indígena Xokó, (…) destacam na narrativa coletiva novos personagens”.
“Ele cuspiu na minha boca como se estivesse fazendo uma oração”: da recusa à autocensura enquanto garantia de expressividade emocional


Dando prosseguimento a um caminho já trilhado por Patti Smith, Joni Mitchell, Alanis Morissette e pela própria Madonna, entre tantas outras, Lorde oferece-nos canções inteligentes e entremeadas por paradoxos rítmicos (às vezes, a melodia é contagiante, mas a letra é depressiva), servindo como porta-voz orgânica, em contínua transmutação, de uma conjuntura musical que não disassocia os devaneios íntimos das motivações coletivas. Afinal, o direito ao prazer sexual – ainda subestimado, em sua faceta estrogênica, por causa do machismo estrutural que atravessa a nossa sociedade – é uma exigência política que merece ser cantarolada, enquanto ressignificamos os traumas psicológicos, geralmente derivados de abusos adolescentes, provenientes de parentes, cônjuges ou estupradores disfarçados de companheiros.
Já inventaram um botão para pular as cenas de sexo, nos filmes? “É verdade que uma pessoa pode morrer de tanto transar?”


Nas mídias sociais, são abundantes – não enquanto piada, infelizmente – a requisição de um “botão para pular cenas de sexo” nos serviços de ‘streaming’. A fim de se evitar o prolongamento do machismo, via adoção assimétrica da nudez entre os gêneros, “joga-se o bebê fora, junto com a água suja”, para utilizar um oportuno ditado popular.
“Eu sou o silêncio que tu não compreendes”, ou da importância de mencionar aquilo que está lá, diante de nossos olhos, mas há quem queira ignorar ou refutar…


Convém recomendar um filme extraordinário, a estréia de uma cineasta negra na direção de longas-metragens, que, por um determinado motivo, é sobremaneira ignorado nos estudos convencionais sobre cinema: além de ser esplendoroso, “Filhas do Pó” (1991, de Julie Dash) chama a atenção pela maneira inteligente com que constrói a sua narrativa, concatenando diversas situações geracionais através de tramas que refutam a teleologia clássica. As corajosas atitudes das mulheres da família Peazant ocorrem de maneira simultânea, ainda que em diferentes temporalidades.
Quem paga a conta, o homem ou a mulher? Um olhar a partir de Bell Hooks e do feminismo negro


No fim do mês de julho o ator Caio Castro viralizou na internet brasileira por ter questionado, no podcast Sua Brother, uma certa “obrigação cultural do homem” em ter que pagar a conta de encontros nos bares e restaurantes [1]. Como em toda polêmica, houve gente defendendo, mas também muita crítica. Assuntos que envolvem direta […]
“Basta colocar a panela em cima do fogo e comer o que sair, uai!” – ou de como é urgente contextualizar o que testemunhamos…


Num excelente livro, escrito em colaboração com a sua esposa Kristin Thompson, o teórico fílmico norte-americano David Bordwell analisa várias obras hollywoodianas através de um escopo aleatório, a fim de demonstrar algumas recorrências narrativas moldadas pelas convenções de gênero e pelas determinações do ‘studio system’ e do ‘star system’. E é assim que chegamos ao musical “As Garçonetes de Harvey” (1946, de George Sidney – rebatizado como “A Batalha do Pó de Arroz”, em Portugal), que – mesmo visto por acaso, numa sessão dominical de algum canal de TV – traz consigo lições valiosas sobre a lida cotidiana…
“Minha mãe herdou essa casa de sua mãe. E eu, dela”: a maternidade enquanto condição política – e também elemento classista!


Apesar de ter sido agraciado com um prêmio de Melhor Atriz para Penélope Cruz, a recepção crítica dedicada a este filme foi acanhada: mais uma vez estranhou-se o envelhecimento do cineasta, a sua imersão explicitamente política (em sentido histórico), as relações sexuais um tanto comportadas. Um novo cartaz mostrava um abraço entre as duas atrizes principais, em que linhas geométricas eram sobrepostas sobre elas (verticais, numa das mulheres; horizontais, na outra). O fundo permanecia vermelho, obviamente. Pedro Almodóvar é um autor!
“Homens não costumam usar o banheiro em bares” (e/ou tergiversações sobrevivenciais do gênero)


Criada, protagonizada e eventualmente dirigida por Michaela Coel, a telessérie “I May Destroy You” (2020) é genial pelo modo como serve-se de estratagemas editoriais para falar sobre traumas de estupros e/ou vice-versa: a catarse convertida em narrativa(s) destaca-se pela pluralidade de leituras e pelas aberturas ao enfrentamento não dogmático (apesar das aparências em contrário). Trata-se de uma poderosa aula de autocrítica identitária, temperada com o mais urgente dos feminismos, o racial!
Quando o identitarismo é reconhecido por suas qualidades, o maior ganho está na representatividade!


A despeito das tensões provocadas pela variante Delta do CoronaVírus, muito mais transmissível e ainda insuficientemente estudada, as cerimônias de premiação artística retomam um ritmo quase normal: na primeira quinzena de setembro de 2021, dois importantes eventos aconteceram, o Festival de Cinema de Veneza e o VMA – Video Music Awards, promovido pela emissora MTV. Em ambos, os discursos de representatividade foram bastante exortados…
De como a Literatura ajuda-nos a lutar e resistir, depois que a nossa língua é decepada… [diretamente ao ponto: abaixo o racismo!]


A difusão de um romance contemporâneo tão primoroso quanto “Torto Arado”, escrito pelo baiano Itamar Vieira Júnior, merece exaltação: lançado em 2019, inicialmente em Portugal, este livro recebeu diversas láureas importantes, entre elas o tradicional Prêmio Jabuti, em 2020. E é uma obra que faz jus à sua fama. Narrado de maneira épica, conta as desventuras enfrentadas pelas irmãs Bibiana e Belonísia – que são filhas de escravos libertos – ao longo de algumas décadas, numa fazenda no sertão da Bahia.
Afinal, ‘qu’est-ce que la prévisibilité?’ (algumas notas sobre Cannes 2021)


Na transmissão das láureas mais aguardadas, no início da noite de sábado, 17 de julho, o presidente do Júri Oficial, o cineasta estadunidense Spike Lee, quebrou o protocolo e anunciou precipitadamente o título do filme a receber a Palma de Ouro: “Titane” (2021, de Julia Ducournau). Não se sabe se acidental ou intencionalmente, mas o importante é que esta foi apenas a segunda vez, na história do festival, em que uma diretora recebe este prêmio.
Tu já viste algum filme da cineasta Esfir Shub? Se não, sabes o porquê?


No livro “Introdução ao Documentário”, de Bill Nichols, a diretora e montadora é entusiasticamente citada, como uma representante mui laudatória do que o autor chama de “documentário expositivo”, que seria aquele tipo de filme que “agrupa fragmentos do mundo histórico numa estrutura mais retórica ou argumentativa do que estética ou política”. Não por acaso, houve quem rejeitasse o tipo de filme realizado por Esfir Shub, em razão de seu viés ostensivamente propagandístico. ..
(Título não autorizado)


Surpreendentemente indicado em quatro categorias importantes do prêmio Globo de Ouro (Melhor Filme Dramático, Melhor Direção, Melhor Atriz e Melhor Roteiro), “Bela Vingança” ajudou a concretizar algo histórico – e muitíssimo importante: pela primeira vez, dentre as cinco indicações destinadas a Melhor Direção, três delas foram ocupadas por mulheres. O filme chega num momento mais que pontual, adequadíssimo.
“Eu não tenho direito a uma segunda chance?”: eis a chaga aberta do cancelamentismo!


O filme “Cartas de Amor” (1953) foi um dos primeiros filmes japoneses a ser dirigido por uma mulher. Kinuyo Tanaka (1910-1977) estreou como diretora após ter voltado de uma viagem aos EUA, onde esteve como embaixadora da cultura nipônica. Foi bastante criticada por seus compatriotas após o seu retorno, sendo acusada de imitar hábitos estrangeiros e, por motivos óbvios, tudo isso está contido nas entrelinhas melodramáticas de seu ótimo filme.
A ameaça mais que visível, em chave recorrente: quem acusa? Quem se defende?


Mesmo que “O Homem Invisível” não seja a obra revolucionária de terror hodierno que alguns apregoam, a total ruptura em relação à trama original é digna de nota mui elogiosa. Em verdade, exceto pelo título wellsiano, não há mais nada em comum com o enredo clássico: o que interessa ao diretor é denunciar a invisibilização das mulheres que denunciam agressões
O dia que uma antropóloga cavou minhas certezas: uma crônica sobre a violência


Percepções socioantropológicas sobre a violência doméstica numa cafeteria em Brasília. Era uma sexta-feira qualquer de 2019 e meu whatsapp tocou. – Olá! Marcio? (Não reconheci o número mas pelo francês aportuguesado entendi de quem e do quê se tratava). Era a resposta de um e-mail que eu havia mandado dias antes. – Oi, Olga* ! […]
Pergunta supratextual: no feminismo orgânico, há lugar para as patricinhas?


“Adoráveis Mulheres” (2019), indicado a seis categorias no Oscar 2020 mas preterido na categoria de Melhor Direção, engendrou polêmicas acerca do machismo dominante na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Em paralelo a estas polêmicas, foi muito criticado o olhar excessivamente “branco” (porque privilegiado) da diretora Greta Gerwig. Em que sentido tais polêmicas favorecem ou denigrem o filme em si?
“What the Fox”: denúncias bombásticas são potentes furos cinematográficos!


Em meados de 2016, em meio à agressiva campanha eleitoral do magnata Donald Trump, que, afinal, foi eleito presidente dos Estados Unidos da América, a jornalista Gretchen Carlson processou o então presidente da emissora Fox News, Roger Ailes, por assédio sexual, numa situação que desencadeou diversas denúncias semelhantes. Em 2019, esta cadeia de eventos (extra)jornalísticos converteu-se em enredo do filme “O Escândalo” [título original: ‘Bombshell’], dirigido por Jay Roach e roteirizado por Charles Randoph,
Como descrever a Música – e, por extensão, o gozo – através da Imagem


Mesmo sendo um filme de época, cujo enredo situa-se no século XVIII, as questões abordadas pelo roteiro de “Retrato de uma Jovem em Chamas” ainda possuem muita relevância hodierna – ou pior: continuam sendo demandas femininas ainda insuficientemente atendidas por emancipação social.
Para além das láureas merecidas e (pré-)indicações aguardadas, visibilidade feminina importa!


Numa genial demonstração de pleno controle de sua ‘mise-en-scène’, o cearense Karim Aïnouz eventualmente faz com que a trama seja atropelada por efeitos sonoros perturbadores, explosões cromáticas deslumbrantes e efeitos de montagem sobremaneira elaborados em suas implantações elípticas. O pendor melodramático apresenta-se de maneira pós-moderna, maneirista, onipresente mas não centralizada, como ocorre nos clássicos norte-americanos…