“Eu deixei o telefone fora do gancho”: ou de quando precisamos nos desconectar para conseguir alguma conexão… (e/ou vice-versa)

Convém lançarmos novas luzes a obras que, num momento inicial, foram incompreendidas e sumamente rejeitadas. Um exemplo oportuno é a (aparente) comédia estadunidense “O Telefone” (1988), único longa-metragem cinematográfico dirigido pelo ator Rip Torn [1931-2019]. Lançado em janeiro de 1988, este filme foi um fracasso de bilheteria e recebeu péssimas e unânimes críticas, mas, sendo descoberto hoje em dia, quando os telefones celulares praticamente se converteram em extensões inorgânicas de seus usuários, demonstra-se sobremaneira advertente. Além de, claro, chamar a atenção para o extremo talento de Whoopi Goldberg, então insuficientemente reconhecido, em termos dramatúrgicos.

“Não sou eu que dirijo os teus sonhos”: “tu te elevas ao receber o amor de uma pessoa morta?”

Em “Não Sou Eu”, Leos Carax compartilha bastante: a despeito de seu título negativo, trata-se de um filme positivamente confessional, em que ele ousa insinuar a possível colaboração nazista de seu pai, Georges Dupont, e se compara ao polonês Roman Polanski, já que ambos são “cineastas e baixinhos”, sem obliterar que este realizador é condenado pelo estupro de uma menor de idade, na década de 1970. Por mais que o diretor afirme a sua predileção pelos planos “já vistos”, esta autobiografia não convencional surpreende pela criatividade, ainda que não esconda o parentesco com a filmografia de Jean-Luc Godard [1930-2022], de quem Leos Carax é admirador confesso.

Final de ano cinéfilo (ou de quando as nossas lembranças e sonhos confundem-se com os filmes que vemos)…

“Aftersun” (2022), longa-metragem de estréia da escocesa Charlotte Wells, foi um dos filmes mais incensados em 2022, tendo recebido algumas láureas no Festival de Cannes e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entre outros prêmios. Além de ter seus direitos de exibição adquiridos pelo serviço de ‘streaming’ Mubi, este filme estreou em salas de cinema no derradeiro mês do ano, de modo que será lembrado nas listas individuais de muitos cinéfilos.

“Colhendo cerejas com as bordas da saia”: o experimentalismo enquanto religião, a sensualidade como modo de vida!

Autodefinido como “um evento que visa fomentar a cultura do audiovisual, através de experiências que questionam a noção e produção da imagem em movimento”, o Festival Ecrã chegou à sua sexta edição em 2022, com duas etapas de exibição das obras: uma presencial, no Rio de Janeiro, entre os dias 01 e 10 de julho; e outra virtual, entre os dias 16 e 24 do mesmo mês. Na ocasião, estrearam várias produções brasileiras e internacionais, que tinham em comum a associação com o rótulo “experimental”.

“Mas, afinal, quem vive?”, ou o que pode ser dito sobre uma obra que fala tudo?

Aprioristicamente, não há mais nada a ser acrescentado às variegadas análises que foram feitas sobre este clássico inicialmente subestimado da cinematografia estadunidense. Quando foi lançado, ele resultou num fracasso de bilheteria, o que foi ressignificado a posteriori, quando veio à tona a versão particular do diretor, sem a narração em ‘off’ e o final feliz imposto pelos produtores. Os críticos ocuparam-se em diagnosticar a genialidade da obra, que converteu-se em objeto de culto. E, quanto mais revemos este extraordinário filme, mais descobrirmos algo sobre ele – e, por extensão, sobre nós mesmos…

“Quando teus olhos se acostumarem à escuridão, a pantera aparece” (um filme terno, para além de qualquer listagem)

Sem quereremos aprisionar a beleza deste roteiro a um estratagema publicitário, convém elogiarmos a mais recente produção da cineasta Céline Sciamma, o delicado “Petite Maman” (2021): reconhecida entre suas especialidades constitutivas, deparamo-nos neste filme com mais uma trama sobre reconciliação geracional, através de um enredo com um toque de realismo mágico. Tal qual indicado pelo título, trata-se do encontro entre uma garotinha de oito anos (magnificamente interpretada Por Joséphine Sanz) e a sua mãe, na mesma idade que ela (interpretada, no caso, pela irmã gêmea da atriz infantil, Gabrielle Sanz). O entrosamento é imediato!

Experimentalismos de agosto: hora de conferir a septuagésima quarta edição do mais criativo dos festivais de Cinema!

Para quem não pode viajar para a Suíça – ou não se sente preparado para voltar às salas de cinema –, o sítio eletrônico do Festival de Locarno 2021 disponibilizou amostras dos cardápios de duas seções, para acesso virtual: uma delas, é o catálogo de Cineasti del Presente, que “oferece uma seleção de primeiros ou segundos filmes, em estréias mundiais, dirigidos por talentos globais emergentes”; a outra é o conjunto de onze curtas-metragens asiáticos que ficaram disponíveis para audiência internacional na seção Open Doors, que se destacam pela qualidade exuberante. ..

“Quando nasce um filme? Às vezes, ele nasce de uma sentença de morte!”

Após estrear no Festival Internacional de Cinema de Veneza, “Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou” (2019, de Bárbara Paz) recebeu o prêmio de Melhor Documentário e um prêmio especial da Crítica Independente, iniciando assim a sua carreira de láureas. Ao ser escolhido pelo Comitê de Seleção da Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais como o representante para a possível indicação ao Oscar de Melhor Internacional em 2021, houve certa celeuma em razão de tratar-se de um documentário, gênero que alguns temem que não seja suficientemente popular (na acepção industrial do termo)…

Para além da quarentena: a cinefilia orgânica enquanto práxis educativa!

Na introdução do livro “História do Cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno”, publicado internacionalmente em 2004, o crítico irlandês Mark Cousins escreve: “é útil imaginar o cinema evoluindo como uma linguagem ou replicando-se como genes, porque isso ilustra que o filme tem uma gramática e que, em alguns aspectos, ele cresce e sofre mutações”. […]

“Os cocôs têm a habilidade do carinho da morte” e/ou sigamos gritando contra o fascismo!

“Pazúcus: A Ilha do Desarrego” (2017, de Gurcius Gewdner) é uma sugestão atípica porém deveras inspirada: em seu cabedal de imundícies, o filme revela muito sobre aquilo que corrói-nos nacionalmente, num viés extrema e propositalmente tosco e metafórico. Desrespeita todas as regras narrativas possíveis, incluindo aquelas que atrelam-se às convenções limítrofes de um alegado bom gosto: é um filme feio, repleto de defeitos, esculhambado, confuso, irregular, porém genial!

Fim de ano, fim de era: haverá ainda cinema?

“Star Wars – Episódio IX: A Ascensão Skywalker” (2019, de J. J. Abrams) era cercado de intensa expectativa, pois punha fim a uma saga com quarenta e dois anos de existência. Mas o capítulo final decepcionou muitos fãs. Motivo: é inautêntico, apenas repisa a alternância de motes heróicos vistos anteriormente. Ou seja: é um filme vazio, ainda que não necessariamente ruim…

De quando um filme português salva a vida do espectador

Extremamente autoral em cada minúcia, “Vitalina Varela” surge como a demonstração cuidadosa do estilo sumamente autoral do lisboeta Pedro Costa, um dos cineastas mais elogiados da década por seus méritos intrinsecamente cinefílicos. Mas há algo que transcende a própria magnificência da Sétima Arte neste filme: além de ser uma poderosa declaração de amor ao próximo e de requisitar uma função ressignificada da religião na contemporaneidade, é um manifesto em prol dos trabalhadores pobres (e imigrantes).

Algoritmos da podolatria no fim de eras: a paixão melancólica enquanto estilo cinefílico confessional!

Se Quentin Tarantino efetivamente glamoriza a violência, isto ocorre enquanto obediência a convenções particulares de gênero cinematográfico e não como reflexo de um testemunho moral. E nisso reside uma das grandes forças da obra-prima de maturidade e reflexão cinéfila realizada por este grande reinventor hollywoodiano: a consecução – não necessariamente voluntária – de um preceito sugerido pelo filósofo Gilles Deleuze [1925-1995] quanto ao enfrentamento do fascismo midiático.