“Quando passar o estado de choque, será algo atroz!”, ou de como a ansiedade cinéfila provoca atropelos…

Se a trama de “Sirât” aprisiona o potencial desta obra em certas convenções narrativas, no que tange à temática da reconciliação e na lida lisérgica com os sentimentos de luto e perante as injustiças contemporâneas, soa muito problemático que o roteiro – escrito pelo próprio diretor, em parceria com o argentino Santiago Fillol, seu colaborador habitual – acate as justificativas pretensamente despolitizadas daqueles personagens, através do pretexto simplista de que “já estamos vivenciando o fim do mundo”, conforme eles dizem em reação à transmissão apocalíptica de uma emissora de rádio.

“Eu não entendo a geração de vocês, é tudo TikTok, Instagram…”: uma metonímia para o cinema norte-americano, em 2024

Se, na maior parte de suas duas horas e dezenove minutos de duração, “Anora” (2024, de Sean Baker) possui um ritmo frenético e consciencioso do término anunciado de seu transe efusivo, no desfecho, ele revela-se uma obra incrivelmente adulta, tal qual o faz-tudo armênio Toros (Karren Karagulian) requer para si mesmo, à guisa de alcunha, ao expor para Ani as incongruências das promessas feitas por Ivan, na ocasião do supracitado casamento. Mesmo que o filme não seja a obra-prima que muitos anunciaram, “Anora” conquista-nos pelo respeito direcionado a personagens que noutras obras hollywoodianas, seriam julgadas por seus atos afobados.

“Quando se muda o corpo, muda-se de sociedade; quando se muda a sociedade, muda-se de alma”: sob quais pretextos conseguimos extrair música da violência?

Dirigido por um cineasta que já foi contemplado com uma Palma de Ouro – pelo irregular “Dheepan – O Refúgio” (2015) – e que recebera, anos antes, outro prêmio relevante no mesmo festival – o Grand Prix por “O Profeta” (2009), que talvez seja a sua obra-prima –, “Emilia Pérez” confirma o talento inventivo de Jacques Audiard, sendo, desde já, um dos favoritos à indicação de Melhor Filme Internacional, no Oscar 2025. E não será nada imerecido: o filme é impressionante, na maneira como conjuga convenções do melodrama e do realismo policial mexicano com os exageros de um musical ‘pop’ e o discurso identitarista.

“Eu estava ocupado, imaginando como sufocaria todo mundo naquela sala”: daquilo que toleramos, politicamente…

“Zona de Interesse” é um filme atravessado por diversos paradoxos e contradições. A recepção crítica a ele foi bastante dividida, aliás: muitos apressaram-se em celebrar a produção como genial, por conta dos experimentalismos de seu diretor, que não mostra o Campo de Concentração de Auschwitz e, ao invés disso, faz com que percebamos o que acontece ali através de ruídos onipresentes e atemorizantes; houve quem tachasse o filme de ignóbil e manipulador pelos mesmos motivos, alegando que o realizador serviu-se de um pretexto atroz para exibir o seu virtuosismo técnico. E há quem considere que ambas as categorias não são necessariamente excludentes.

“Pode-se conhecer as pessoas de diversas maneiras, além do sexo” (qual o seu filme favorito de 2021?)

No mesmo ano em que realizou “Drive My Car” (2021), Ryûsuke Hamaguchi recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cinema de Berlim por seu longa-metragem anterior, “Roda do Destino” (2021), subdivido em três episódios independentes, em que as coincidências relacionais também determinam o tom emocional. Para o diretor, as conseqüências dos encontros sexuais são bastante relevantes, de modo que, apesar de seus enredos se destacarem pela ternura, há também manifestações traumáticas em seu escopo.

“Se tu gostaste deste filme, conte para um amigo. Se não tiveres amigos, conte para um estranho”!

Desde antes de sua estréia no Festival Internacional de Cinema de Cannes, o musical “Annette” (2021, de Leos Carax) tornou-se um dos assuntos mais comentados entre os cinéfilos mundiais. As expectativas concernentes à excelência do filme eram altíssimas, o que foi confirmado pelas resenhas mui elogiosas e pelo prêmio de Melhor Direção recebido no supracitado festival. No dia 20 de agosto do mesmo ano, este longa-metragem foi disponibilizado no serviço de ‘streaming’ Amazon Prime Video. E, ainda que suas imagens grandiosas combinem melhor com uma sala de cinema, o filme causou embasbacamento imediato entre quem pôde conferi-lo. É uma obra autoral que justifica mais de uma revisão!

Afinal, ‘qu’est-ce que la prévisibilité?’ (algumas notas sobre Cannes 2021)

Na transmissão das láureas mais aguardadas, no início da noite de sábado, 17 de julho, o presidente do Júri Oficial, o cineasta estadunidense Spike Lee, quebrou o protocolo e anunciou precipitadamente o título do filme a receber a Palma de Ouro: “Titane” (2021, de Julia Ducournau). Não se sabe se acidental ou intencionalmente, mas o importante é que esta foi apenas a segunda vez, na história do festival, em que uma diretora recebe este prêmio.

Ponto para o cinema libanês – ainda que nem sempre as boas intenções sejam suficientes

Recebedor do Prêmio do Júri no Festival Internacional de Cinema de Cannes, em 2018, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e merecedor de inúmeras láureas internacionais, “Cafarnaum” foi um dos filmes mais elogiados no ano em que foi lançado. Entretanto, o roteiro desta obra é defeituoso justamente pela celeridade pretendida na resolução dos árduos conflitos trazidos à tona.

Acerca de um urgente filme sul-coreano:

Devido à solicitação do diretor sobre a necessidade de restringir determinadas informações narrativas, é mister incorrer nalgumas generalizações analíticas acerca deste filme enquanto píncaro de seu estilo. Mas, ao fazer isso, perceber-se-á justamente como os traços autorais deste brilhante cineasta manifestam-se: “Parasita” (2019) é um filme genial!

A recuperação da harmonia (muito além do resultado de uma competição…)

Repleto de momentos antológicos em sua exposição enternecedora de uma inaudita situação de miserabilidade japonesa, “Assunto de Família” demonstra-se bastante merecedor do prêmio máximo do Festival de Cannes por mesclar inteligentemente a perspectiva de condução autoral, com o auxílio de seus apanágios técnicos, e o clamor por transformação comunitária que unifica os laureados mais recentes.