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“Zap-zap”: comunidades afetivas no espaço virtual

“Zap-zap”: comunidades afetivas no espaço virtual

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay.

Enquanto sorvia um vinho ordinário, Harry Haller, protagonista do desconcertante romance O Lobo da Estepe[1], refletia sobre o caleidoscópio de pequenas coisas que davam sentido à sua vida insensata. Eram imagens e sons de grandes e populares obras artísticas misturados a coisas e acontecimentos diminutos, esquecidos pelo tempo. No encaixe sutil entre as memórias que compartilhava com o mundo e aquelas que apenas nele se haviam registrado, residia sua composição humana, única e arredia.

O protagonista de O Lobo da Estepe é um homem constituído por reminiscências, assim como somos todos nós, assim como é a própria história, na acepção de Walter Benjamin[2]. Reminiscências são lembranças constitutivas, pequenos tesouros do que resta à infinidade de memórias possíveis extraídas à complexa aventura do existir. Remanescer é o ato de persistir, a luta para esquivar-se ao olvido do tempo.

Lutam para remanescer os desenhos de infância presenteados a papais e mamães, abandonados nas empoeiradas gavetas do outrora; os poemas de juventude escritos às escuras do mundo e de si; as fotografias desfocadas de momentos simbólicos, únicos, desprezadas por não lhes tolerarmos a imperfeição; o prato que traz à mesa toda a família em harmonia, cuja receita enterra-se no túmulo com a avó que jamais a anotara; a melodia composta para um amor incompreendido que o tempo e a vida fizeram esvanecer.

A lista das coisas que lutam para remanescer é provavelmente tão grande quanto tudo o que existe. E nem a recordação dos grandes eventos ou feitos compartilhados socialmente nem a lembrança individual das pequenas coisas incomunicáveis são capazes, isoladamente, de assegurar a reminiscência dessa luta. É a memória coletiva[3], produzida e comunicada no âmbito de comunidades afetivas, quem destaca à vulgaridade do corriqueiro os pequenos detalhes de cotidiano, aqueles que permanecem ante todas as perdas. A memória coletiva salva o prosaico de sua carga negativa: a monotonia, a banalidade, a desimportância.

Na era da liquidez[4], onde as relações são fugazes, as interações virtualizadas, a comunicação hiperbolizada e imperativa, e a temporalidade envolta em um poderoso vórtice de novidades obsoletas, como tornar possível a remanescência desse prosaico auspicioso a que Michel de Certeau denomina vivido[5]? Onde encontrar a comunidade afetiva, produtora e guardiã da memória coletiva no incomensurável mundo virtualizado da pós-modernidade?

Não trago o pessimismo do fim da história. Entendo que a comunidade afetiva está onde sempre esteve, na rua, na vizinhança, no esporte, na escola, na família, na igreja, no trabalho, nos círculos de amizade. Contudo, moldada às condições do presente, ela ocupa agora não apenas o espaço real e presencial que sempre ocupou, mas igualmente ou até em maior medida, o espaço virtual das redes sociais, outrora inexistente, quiçá inimaginável.

Não obstante sua forma de comunicação aparentemente caótica, empobrecida, iconográfica e fragmentada, grupos ou comunidades virtuais de amigos do bairro, da rua, da escola, da classe, da turma, da família etc., resgatam e atualizam o vivido, por meio da memória coletiva.

Entre o florido “bom dia” e a provocação do futebol ou da política, entre o meme que faz rir, a selfie narcisista e o texto transgressor das regras gramaticais, ressurgem peças que remontam o infindo quebra-cabeças da memória significativa: um se lembra de um verso do poema esquecido pelo amigo; outra mostra uma fotografia bem enquadrada do momento único e simbólico que a prima deixou passar por imperícia; aqui e ali vão emergindo os ingredientes da mágica receita da avó; a ex-namorada se recorda que houvera uma canção; a tia mostra um retrato onde ao fundo se vê um desenho de criança que leva a mãe às lágrimas. Assim, no livre decorrer das reminiscências, vai-se tecendo a história das coisas miúdas e se atualizando o vivido.

Se o uso das redes sociais para o resgate dos grupos de afeto e da memória coletiva compromete, mantém ou remodela os papéis societários da comunidade, cabe às Ciências Sociais examinarem. É oportuno, contudo, que se reconheça o espaço virtual como lócus investigativo legítimo das relações e interações sociais constitutivas do vivido na pós-modernidade, dispensados os pessimismos paralisantes.


[1] HESSE, H. O lobo da estepe. 16.ª ed., tradução Ivo Barroso, Rio de Janeiro: Editora Record, s/d.

[2] BENJAMIN, W. “Sobre o conceito da História” In: Benjamin, W. Obras Escolhidas, Vol. 1 São Paulo: Brasiliense, 1985.

[3] HALBWACHS, M. A memória coletiva, São Paulo: Vértice, 1990.

[4] BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade, tradução Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

[5] CERTEAU, M, A invenção do cotidiano — artes de fazer, Petrópolis: Vozes, 1994.

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