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Uma reflexão sobre o Brasil atual e o Processo Civilizador

Uma reflexão sobre o Brasil atual e o Processo Civilizador

Em meio à balbúrdia da prisão do Queiroz[i], principal caso de corrupção envolvendo o governo; da ida fugida do ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, para os Estados Unidos; e dos ataques explícitos dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal, a Câmara dos Deputados se propõe a votar um dos principais projetos de lei apresentados pelo chefe do Poder Executivo: o PL nº 3267, de 2019[ii], que propõe alterar o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), flexibilizando drasticamente a Lei.

Na cerimônia de protocolo, em 04.06.2019, o presidente afirmou que: “Nós começamos a acreditar mais na população. Quanto mais lei tem o país é sinal que ele não tá indo no caminho certo. Quanto menos leis, o povo está mais consciente dos seus deveres”[iii]. O texto trazido pelo projeto propôs mudanças como o fim da exigência de exame toxicológico para motoristas profissionais. Também retirou dos departamentos de trânsito (Detrans) a exigência de credenciar clínicas para emitirem o atestado de saúde para renovação da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Segundo o próprio presidente da República, “qualquer médico” poderá conceder esse laudo.

No caso de motoristas até 65 anos, o projeto propõe dobrar a validade da habilitação dos atuais 5 para 10 anos. Outro ponto da proposta altera, de 20 para 40, o limite máximo de pontos que um motorista pode acumular, em até 12 meses, sem perder a licença para dirigir. E o mais grave e simbólico, a meu ver: deixa de tornar obrigatória a cadeirinha para crianças nos veículos. Hoje essa exigência não está prevista em lei, apenas em norma do Contran – Conselho Nacional de Trânsito.

Será que somos suficientemente civilizados para afrouxarmos as leis? Penso no Processo Civilizador apresentado no livro do sociólogo alemão Norbert Elias. Nessa obra, Elias leva-nos a pensar no que aconteceria se um homem da sociedade contemporânea fosse, de repente, transportado para uma época remota de sua própria sociedade, a medieval, por exemplo. Segundo o autor, é possível que o indivíduo encontrasse um modo de viver muito diferente do seu, alguns hábitos e costumes lhe seriam atraentes, convenientes e aceitáveis do seu ponto de vista, enquanto outros seriam inadequados. Estaria diante de uma sociedade que, para ele, não seria civilizada.

Podemos afirmar de forma simplista que todas as sociedades, ao longo da história, criaram normas e princípios com a finalidade de orientar as relações entre grupos e pessoas. Apesar de nem sempre procederem do Estado, alguns desses princípios impunham regras que se não fossem seguidas, implicariam em penalidades, que iam da desaprovação à exclusão daqueles que não as respeitassem. Assim foram criadas as leis. O processo civilizatório educacional que Elias analisa vai em direção ao equilíbrio entre os interesses individuais e os coletivos na sociedade, produto do autocontrole.

Elias afirma que, para que o homem possa ser livre e feliz, é necessário um equilíbrio mais durável, uma sintonia mais fina, entre as exigências gerais da existência social do homem, por um lado, e suas necessidades e inclinações pessoais, por outro. Dito de outra forma, é preciso satisfazer as necessidades e desejos pessoais, no entanto essa satisfação não pode destoar das regras da sociedade. Se a estrutura das configurações humanas, de sua interdependência, tiver essas características, se a coexistência delas, que afinal de contas é a condição da existência individual de cada uma, funcionar de tal maneira que seja possível a todos os assim interligados alcançarem tal equilíbrio, então, e só então, poderão os seres humanos dizer a respeito de si mesmos, com alguma honestidade, que são civilizadas.

Norbert Elias, ao analisar obras de autores que trataram sobre os costumes, apresenta critérios utilizados para definir as direções dos processos civilizadores. O principal critério para definir a direção do processo civilizador é a mudança na balança entre coerção externa, penalidades, punições, prisões, etc., e auto coerção – educação, civilidade, cortesia. Quando a sociedade é civilizada e educada, as punições são menos necessárias. Estaremos nesse estágio?

Não me parece. O Brasil tem vivenciado um momento político e social onde os limites entre “o que pode” e “o que não pode” está muito difuso. O próprio presidente agride em suas falas e incita constantemente pessoas a agredirem segmentos, tais como os membros da imprensa brasileira, por exemplo. Afirma que bandido bom é bandido morto, apesar dos direitos humanos e das leis correspondentes, mesmos as constitucionais. Extremamente desrespeitoso aos contrários à sua atuação, incentiva que a população aja individualmente e em grupos, mesmo que não se respeite as leis. Depois nega tudo e produz fake news. Defende o desmatamento e o fim da proteção ambiental. Com o uso de inúmeros palavrões, presidente e seus seguidores verbalizam amplamente racismo, machismo e homofobia. Após a sua posse, os indicadores de violência doméstica e de violência policial cresceram rapidamente. Seria coincidência?

Sem acreditar nem mesmo na ciência, o presidente do Brasil, que se diz defensor das famílias e de Deus, acima de tudo e de todos, desinforma, ensina maus costumes, questiona sistematicamente os direitos humanos e induz à morte crianças, adultos e idosos, à medida que desacredita a pandemia do Coronavírus e o seu adequado combate. Seus seguidores vibram e continuam fiéis. Eu diria que nunca estivemos tão longe de sermos considerados civilizados, pelo menos não se tivermos ainda um mínimo de autocrítica.

Bibliografia

ELIAS, N. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, v I.

 _____________. O processo civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, v. II.


[i] Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro e amigo pessoal do presidente Jair Bolsonaro, foi preso acusado de atuar em um esquema de “rachadinha”, quando assessores parlamentares devolvem parte do salário. A prática teria acontecido no gabinete do então deputado estadual, Flávio Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Policial militar aposentado, Queiroz movimentou R$ 1,2 milhão em sua conta bancária de maneira considerada “atípica”, segundo relatório do antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o que deu início às investigações.

[ii] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1760995&filename=PL+3267/2019

[iii] https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-06/governo-apresenta-proposta-de-mudanca-no-codigo-de-transito-brasileiro

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