EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

Uma cobaia, um bode e um tigre nos salões do Kremlin

Uma cobaia, um bode e um tigre nos salões do Kremlin

A cobaia mui revoltada, por ficar a saber-se dispensável, uma vez que se acreditava imprescindível.
O bode, tão útil, ainda não escolhido, mas que será, tem de o ser, mal seja Yom kippur.
E o tigre, que já foi tão dominante no Oriente, agora, embora ainda longe de estar extinto, existe em áreas restritas, e alterou sua constituição.

Três animais que, desprezados por Esopo, entretanto muito se adequam às fábulas, mais ainda às modernas. Sabendo que o grande escritor grego os punha aos pares, embora aqui tenhamos este trio, pelos salões do Kremlin, não digamos vagueando, mas de toda sorte ociosos, naqueles grandes salões, esperando pelo futuro, por aquilo que lhes estará reservado, e, uma vez que ninguém foge a seu destino, muito embora não se saiba este qual é, posto que antes temos de esperar que ele aconteça.

Dependendo do final que efetivamente venha a ter esta fábula em andamento, meu ilustrado leitor fará o obséquio de no tempo oportuno concluir a história, pôr-lhe termo, uma vez que por enquanto permanecerá sem final, e sem a total identidade dos animais, ainda que, quanto a cobaia penso que não haja a menor dúvida de quem seja, ou será que me engano? Sendo a que dizem estar exilada na Bielorrússia, mas que sabemos, e saberemos, que o destino lhe reserva outras posições mais miseráveis ainda, por desprezível que é, mas sempre sabendo que a imensa fortuna que entretanto acumulou, não lhe deixará outra miséria que a da abjeção.

Cavia porcellus, é o nome deste roedor andino, da América do Sul portanto, que ao longo da história que lhe imputaram os comerciantes europeus do XVI, espalhando-o por todo o globo, o que acabou por malbaratar o bichinho, que só por sua utilidade já não está extinto, mas que não mais existe na Natureza. De seus muitos nomes como porquinho, da Índia, como chamaram-lhes os franceses, eram as Índias Ocidentais bem entendido; ou da Guiné como queriam os ingleses, do mar, diziam os alemães e russos, na China era o rato holandês, e no Japão a marmota, por associação com um animal de outra família de roedores, Sciuridae, que é bem conhecida na Asia, e que os holandeses quando levaram as cobaias para o Japão deram-lhes esse nome. E sem fazer alguma marmota, sem qualquer ardil, fica apontado o primeiro bicho da fábula.

O marido da cabra, cornudo como não podia deixar de ser, tantas vezes mitológico, Capra aegagrus, usado desde tempos mui antigos para expiar, inicialmente deixados para trás na Natureza, quando as tribos ainda vagueavam, estes eram deixados como elemento apartado do rebanho, para cumprir esta função sacrificial; e mais tarde no Templo, em Jerusalém, transformados em ‘korban’, oferendas, um irá ser queimado, e o outro, o da expiação, os sacerdotes com a mão sobre sua cabeça irão confessar os pecados do povo de Israel, para depois vir a ser deixado ao relento na Natureza selvagem, onde irá, em sua morte, levar consigo os pecados todos. => Diferentemente dos outros animais, onde é o nome do macho que designa a espécie, neste caso é o da fêmea. Dizemos tipos de cavalos, raças de cães, manada de elefantes, mas ninguém diz rebanho de bodes. Será por penitência?

Zhilaohu, o tigre de papel (1), diferentemente do animal tigre, Panthera tigris, o grande felídeo asiático por excelência, não tem existência física, sendo apenas uma expressão de origem chinesa, que se tornou muito conhecida quando Mao Tse Tung num aparte bem humorado a uma conversa com Henry Kissinger em 1973, disse ser a expressão sua criação, o que vem a provar que o grande timoneiro acalentava a ideia, muito chinesa ademais, de não acreditar naquilo que pareça muito poderoso à primeira vista. Ideia que sabemos que Mao guardava desde o pós segunda guerra. Eis o que disse desde então: “A bomba atómica é um tigre de papel que os reacionários estadunidenses utilizam para assustar as pessoas. Parece terrível, mas, na verdade, não é. Claro que a bomba atómica é uma arma de extermínio em massa, mas o resultado de uma guerra é decidido pelo povo, não por um ou dois novos tipos de armas. Todos os reacionários são tigres de papel. Na aparência, os reacionários são aterradores, mas, na verdade, não são tão poderosos.” (2) E repetiu a expressão e a ideia muitas vezes depois, do que há vários registros, e hoje para nós será ideia bem oportuna, e repti-la também é oportuno, e não só de forma fabulística, porque na realidade sempre surgem outros e novos tigres de papel. Sempre os houve e sempre haverão.

Qualquer semelhança com reacionários atuais não é mera coincidência, “…os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado…” (3) o que demarca a não autonomia humana, mas nossa total dependência das realidades passadas que se impõem, posto que somos todos devedores (debitários, termo não dicionarizado) da História, essa que nos antecede, molda e conforma. No texto de 1852, Marx começa esse ponto com a acertiva seguinte: “Hegel afirma que “todos os grandes fatos e personagens da história universal aparecem como que duas vezes. Mas ele esqueceu-se de acrescentar: uma vez como tragédia e a outra como farsa.” – Mesma fonte (3).

Se a cobaia fugir ao tigre, esse devorará a bode, que para isto lá existe. Os salões do Kremlin, em sua Natureza selvagem, revelarão o que é historicamente sabido, que nenhum animal que não seja muito feroz lá sobrevive, e que dada a natureza da floresta envolvente, e das incompatibilidades ambientais, os animais que lá consigam existir estão no topo da cadeia alimentar, devorando aos demais. O grande problema que a Natureza ainda não resolveu de outro modo que o de eliminá-los, é o de que os animais envelhecem, e têm de ser substituídos. Se o bode fugir ao tigre, a cobaia passa a ser bode, e cumpre-se o ritual alimentar e fagedênico. Se o tigre velho, for marrado pelos bodes, outro tigre surgirá, e ai de ti cobaia.

Independentemente do final, a fábula se completará, posto que tudo tem fim. E o tempo, esse exterminador absoluto, a nada nem a ninguém perdoa. Pobres tigres, pobres bodes, e pobres cobaias.

Referências

(1) ZHILAOHU, tradução de John Francis Davis em seu – ‘The Chinese: A General Description of the Empire of China and Its Inhabitants.’ London: Charles Knight. 1836. 2 vols.’, 1946.

(3) Karl Marx na Revista ‘Die Revolution’ 1852 – ‘O 18 Brumário de Luís Bonaparte’. (depois Napoleão III)

(2) Mao Tse Tung em entrevista a Anna Louise Strong – ‘Letter from China.

Imagem

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]