Faz algum tempo que a reflexão sobre o Outro me interessa. Ela me acompanhou no mestrado de forma transversal, mas no doutorado essa figura aparentemente fora do Eu e não é parte de Nós, ganhou lugar de destaque. Chego, inclusive, a colocar em dúvida a existência do Outro.
Em tempo de pandemia, quando o mundo ultrapassou mais de 1 milhão de vidas perdidas (o Brasil superou os 147 mil seres humanos mortos, grande parte de perdas evitáveis), uma pergunta volta a gritar: quem são essas e esses que desaparecem de nosso convívio? Seriam os Outros?
Certamente quando você estiver lendo esse texto, a quantidade de mortes será maior. Todos os dias, centenas de mortes. Fico no Brasil onde todos os dias, em média, mil pessoas morrem por causa da Covid-19 e dos vírus da ignorância e da indiferença. Milhares de seres humanos perdidos!
“E daí?”, a pergunta do presidente brasileiro diante dessa tragédia é a síntese da vitória da morte sobre a vida, é a materialização do Outro que não queremos entre nós.
“Gripezinha”, “não sou coveiro”, “fazer o quê?”, morre porque é “bundão”. Essas e outras ações do maior representante político do Brasil, e que tem apoio crescente, indica o sucesso de uma política violenta, de ódio e morte, que consolida entre nós a máxima radicalidade no Outro, o que pode morrer e não faz falta.
Em julho de 2007 um avião caiu nas proximidades do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Uma tragédia. Quase 200 mortos. Um assombro e tristeza coletiva. O Brasil, com justiça a cada vida perdida, parou, chorou, enlutou.
Hoje, cinco aviões com 200 passageiros cada caem todo santo dia no país e por seis meses sem parar. Hoje, para maioria de nós, isso não gera espanto, dor, luto. Por que quase mil vidas perdidas a cada dia e por seis meses no Brasil não nos perturba, não produz tristeza em nós?
Vínculos humanos rompidos
Uma possível explicação para essa anestesia pessoal e coletiva é que chegamos a um estágio de sociabilidade em que parecem rompidos os vínculos humanos entre nós. Sim, em vários espaços, já experimentamos a barbárie. Expressões como “e daí?” e “tanto faz” diante de milhares de vidas perdidas todos os dias é um nítido sinal desse desligamento humano.
Milhares de histórias desaparecidas, famílias sem direito a um último adeus e, a maioria de nós continua a suspirar: “e daí?” Insisto: por que essa tragédia não faz emergir a mínima tristeza entre nós? Por que, de modo tão perverso, desprezamos a morte do Outro, mesmo sendo esse Outro nós mesmos?
Em textos anteriores, mostrei que um sintoma de desumanização é a transformação do Outro em um objeto, em uma coisa, a coisificação do humano. A escravização colonial, por exemplo, foi um momento central desse processo. Agora, podemos perceber que também objetificamos o Outro quando o numeramos.
Retirar o humano do Outro, considerá-lo um número ajuda nessa anestesia perversa. Assim, as perdas das vidas viram estatísticas, cabendo em planilhas, como se fossem dados econômicos. Mães, pais, filhos, avós, amigos, gente de carne, osso, histórias e sonhos são engolidas por tabelas, gráficos, com flutuações diárias, como se fosse números na bolsa de valores, com subidas, descidas, estabilidade, etc.
A vida como permanência da espécie
O professor Mauro Iasi, em sua coluna na editora Boitempo, lembra que a ideia de humanidade implica em nossa capacidade de manter a espécie. Para isso, os humanos buscam preservar a sua vida e a do próximo. Assim, tem-se uma espécie de pacto entre nós, de modo que, em nossa caminhada terrena, a vida seja cuidada, preservada, tendo o mais alto valor.
Na cultura ocidental cristã, por exemplo, tirar a própria vida e a do Outro é o ápice do pecado. A morte para o humano, mesmo a natural, é a interrupção da humanidade. No fundo, a morte é o fracasso e a derrota da espécie humana, morte contra quem lutamos em vão. Como ela é invencível, esse momento grave que põe o fim a existência ganhou status de rito memorável.
Por isso, ao longo da história a morte passou a ser ritualizada: dias de velório, luto, cor preta, velas acessas, urna funerária, orações, flores, silêncio, sentimento de vazio. Há o lugar para o cultivo dessa memória: o cemitério. Sempre houve algum respeito com esse ritual. Povos vencedores de guerra devolviam os corpos dos inimigos para que os derrotados sobreviventes velassem seus mortos.
Como a morte é inevitável, criamos dois modos de lidar com ela. O primeiro é mais racional, o reconhecimento de que a morte é parte da vida, um destino imparável, porém esperando que ele esteja bem distante de nós, sempre chegando primeiro no Outro. O segundo modo é o religioso, onde separamos corpo e alma, ou seja, o que morre é a matéria, a alma segue para ser purificada. Essa solução nos empresa certa resignação.
A morte nos deixa nus
Racional ou religiosamente vamos ter que enfrentá-la. A dor da perda, a vitória da morte sobre a vida, o fato incontestável do fim de nossa existência sempre nos deixou temerosos. Diante de um corpo sem vida aos nossos olhos, sentimos nossa humanidade fragilizada. Em outras palavras, a tristeza é profundamente humana porque deixa nus nossos vínculos com os mesmos de uma espécie.
Entretanto, no Brasil, as mais milhares de vidas perdidas não provocam nem tristeza nem luto. E agora? Talvez quem já rompeu os vínculos humanos fica completamente indiferente a essas perdas. Morreu? “e daí?” Quem morreu foi o Outro, não sou Eu. Pobre ilusão.
Na medida em que é o Outro de nós mesmos quem está a morrer, somos Nós mesmos quem estamos a desaparecer a cada dia. Infelizmente, a gente não quer enxergar nossa partida. Talvez somente o rompimento de vínculos humanos faz com que, apesar da morte tão perto de nós, a morte deixou de ser problema nosso e passou a ser do Outro.
Lembro que o Outro sempre foi fabulado como inimigo. Com a pandemia, esse Outro no Brasil é o inimigo da economia, portanto, “peso morto”, imprestável, descartável, doente, velho, pobre, o excesso que é prejuízo para a economia e o governo. Assim, o Outro não é merecedor da vida. Tem-se aí um princípio nazifascista: a eliminação permanente do Outro.
Morreu, “e daí?”
Como a morte é a do Outro e os vínculos se perderam entre nós não há possibilidade de associação, de proximidade, de empatia. Não há dor nem tristeza. O Outro é um objeto sem valor. Essa é uma indiferença ativa que transforma as relações humanas em relações de coisificação, onde o Outro foi arrancado de nós.
Desse modo, a morte do Outro não é sentida como uma perda humana e, pior, nem perda alguma. Sendo assim, não há espaço para lamento e a ausência do Outro em nada interfere. Tem-se uma sociabilidade que se desumaniza na medida em passamos a empregar valor as coisas, aos bens materiais, as relações de mercado. E “a carne mais barata do mercado é a minha carne negra”, canta Elza Soares.
Mesmo diante de cinco aviões caindo todos os dias em nossas cabeças durante seis meses, a grande maioria de nós somente se preocupa com a abertura da atividade econômica, do shopping, com o bom funcionamento do mercado. Mesmo que esse retorno ao “normal” continue a matar de vidas, muitos de nós insiste: “e daí?”, “a economia não pode parar”.
Diante dessa tragédia humana, pelo menos surge uma boa notícia trazida por Iasi e que compartilho: se você estiver triste com inúmeras vidas perdidas, se está angustiado com a naturalização da morte, talvez você ainda preserve vínculos de humanidade. Nesse caso, quem sabe o Outro ainda seja parte de suas relações humanas, de modo que você continua tecendo uma rede de sociabilidade da qual não pode se desligar.
Nesse momento, talvez a tristeza seja o lugar de uma humanidade perdida.
Imagem gratuita (joseph_Berardi) em Pixabay
2 respostas
Parabéns! Excelente e necessária reflexão. Nós alenta. A tristeza é claro sinal do nosso vínculo e pertencimento ao outro. Sem o outro não há eu, não há nós, não há vida. Não há.
Obrigado Barbalho por sua leitura e comentário. Sigamos firmes!