Em 2019 estreou na Amazon Prime a série The Boys, inspirada na saga homônima vinda das revistas em quadrinhos. Misturando humor, aventura, deboche, violência e momentos escatológicos, a série, dirigida por Eric Kripke, vem ganhando fãs a cada ano e está em fase de elaboração de sua quarta temporada. Nas três temporadas disponíveis, bem-sucedidas com público e crítica, The Boys já nos presenteou com muitos momentos desconcertantes que compõem uma caracterização bastante atípica dos super-heróis, se comparados àqueles que conhecemos dos universos Marvel e DC, por exemplo. Momentos esses que incluem um super-herói capaz de encolher de tamanho, entrar no ânus de uma pessoa e aumentar de tamanho dentro dela, explodindo-a de dentro para fora, ou o famigerado “herogasmic”, uma grande orgia entre os super-heróis.
Os realizadores da série vêm cumprindo bem o grande desafio estético de transpor para o audiovisual momentos bizarros como esses, superpoderes e cenas de ação extraídas de The Boys das histórias em quadrinhos, o que não é tarefa fácil. Criada por Garth Ennis e Darick Robertson e publicada entre 2006 e 2012, a saga de HQs é, para alguns fãs, ainda mais sombria e debochada que a sua versão nas telas. The Boys foi originalmente publicado pelo selo Wildstorm, da DC Comics, que entretanto ficou receosa com o conteúdo e cancelou a série [1]. Quem deu continuidade às publicações foi a Dynamite Entertainment.
Billy Bruto nos quadrinhos é bem mais intimidador que sua versão streaming (interpretada por Karl Urban), a ponto de disputar com o Capitão Pátria o posto de principal vilão da história em algumas circunstâncias. Já o Trem-Bala (Jessie T. Usher), na última temporada parece querer se redimir, repensando sua postura e até pedindo desculpas a Hughie (Jack Quaid). Nos quadrinhos, o personagem não chega nem perto de aprender com os erros ou se arrepender [2].
Mas as supostas amenizações da adaptação ao streaming – e parece difícil acreditar que a versão HQ é ainda mais pesada – não impedem que The Boys seja uma das melhores críticas ao capitalismo feitas atualmente em forma de produção audiovisual. Sim, pois toda a “absurdice” e escatologia não tiram o senso crítico da série. São tantas as críticas à sociedade contemporânea que é difícil saber por onde começar. The Boys dispara contra o hiperconsumismo, a espetacularização midiática, as indústrias farmacêuticas e bélicas, o avanço da alt-right trumpista nos EUA etc.
Concentração de poderes x democracia
Mas há uma ideia central fundamental: parafraseando a clássica fala do Tio Ben (do Homem-Aranha), que disse que “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, em The Boys fica claro que “Com grandes poderes, vem a absoluta certeza de que você se tornará um grande babaca.” A frase inclusive é dita literalmente por Billy Bruto em um dos episódios da última temporada. E nem precisava ser dita, porque naquela altura da trama, essa ideia central já estava muito clara.
Isso porque, no universo ficcional de The Boys, os poderes sobre-humanos dos super-heróis os levam a se comportarem como donos do mundo. Eles só querem saber mesmo é de seus próprios interesses e, somente nos palanques ou perante as câmeras de TVs e celulares, fingem se importar com o bem comum. Essa é a principal diferença entre os super-heróis de The Boys e aqueles com os quais nos acostumamos nos universos Marvel e DC Comics. A série é perfeita ao mostrar como o excesso de poder mexe com a cabeça das pessoas. Os super-heróis posam de defensores da sociedade perante a mídia, mas agem como vilões quando ninguém está olhando. Aqueles que se propõem a enfrentá-los também ficam seduzidos pelo gosto do poder quando o experimentam.
Na vida real não há os mesmos poderes sobre-humanos, mas há outros, como o poder aquisitivo por exemplo. E, numa sociedade capitalista, com o poder aquisitivo vêm outros poderes, como o poder político e o poder da informação e difusão das ideias. Por isso, quando a gente vê pessoas acreditando que a “boa vontade” de bilionários como Elon Musk vai garantir liberdade de expressão para a sociedade como um todo e de forma democrática, temos a certeza de quem aplaudiria o Capitão-Pátria se vivesse no universo ficcional de The Boys.
Pois foi em nome da liberdade de expressão e com o argumento de sua garantia que o bilionário sul-africano anunciou que compraria a rede social Twitter. Houve gente comemorando. Em seguida, Musk recuou, alegando que a empresa não estaria sendo transparente na prestação de informações sobre a plataforma, mais especificamente sobre o número de perfis fake. A briga entre Musk e o Twitter foi parar na justiça, com acusações mútuas [3].
Regulação
No meio de tudo isso, existe a discussão sobre a necessidade de mecanismos de regulação para restringir os excessos de poder – das mídias, das grandes fortunas, das armas, do Estado – de tudo o que possa pôr em risco a democracia. Porque grandes poderes concentrados nas mãos de poucos são sempre perigosos. Sejam esses poucos os bilionários ou as big techs (ou a mistura entre ambos). Sobre as concentrações de grandes fortunas, o economista Eduardo Moreira Real diz:
A partir de um certo valor, todo o dinheiro que a pessoa ganha não é mais para comprar carro ou avião. Ele é só poder. Portanto, o dinheiro que vem na última camada, a dos super-ricos, é só concentração de poder. E uma sociedade tem que tomar muito cuidado com para quem ela vai dar todo o poder concentrado, pois esse cara que vai ter todo esse poder concentrado não é alguém que foi eleito, votado, escolhido. Esse cara não pode comandar uma sociedade sem ter legitimidade para isso [4].
Se Eduardo Moreira chama a atenção para os riscos que bilionários implicam para a democracia, ao mesmo tempo em que critica o modo de tributação no Brasil – o que invariavelmente nos leva à discussão sobre a tributação de grandes fortunas – quando o assunto é tecnologia, o que não falta são especialistas apontando para os perigos dos usos e abusos dos dados de usuários pelas diversas plataformas e como elas podem interferir em processos eleitorais e, consequentemente, em legislações, moldando o estado e a sociedade conforme seus próprios interesses.
Um desses especialistas é o cientista da computação Silvio Romero de Lemos Meira, um dos responsáveis pela criação do Porto Digital, um dos principais polos de tecnologia do país e que abriga em torno de 350 empresas de base tecnológica em Pernambuco. Ele fala sobre a necessidade de regulação e os riscos de se encarar a tecnologia com muito entusiasmo:
É preciso abordar criticamente o desenvolvimento tecnológico, com todas as suas dimensões filosóficas e regulatórias. Deveríamos permitir qualquer propaganda no Facebook, inclusive as que incentivam, às vezes de maneira subliminar, comportamentos nazifascistas? Ou permitir mentiras explícitas em propagandas políticas? Deveríamos responsabilizar o intermediário? A tese que levou à explosão das mídias sociais é a seguinte: os intermediários, como o Facebook, não têm responsabilidade. É como se a mídia social fosse apenas um fio telefônico que transmite informações. Mas o Facebook não é apenas um transmissor, ele é praticamente uma estação de informação global e faz intervenção editorial. Deveria ser regulado [5].
Depois dos efeitos negativos da desinformação em redes sociais nos processos eleitorais na década de 2010 e da onda de negacionismo científico e mentiras que prejudicaram a saúde pública durante a pandemia de covid-19, representantes do poder público e da sociedade civil em diversos países vêm aprimorando mecanismos de regulação e cobrando maior proatividade por parte das empresas de tecnologia para lidar com os problemas [6].
Aqui não se trata de traçar um comparativo do ponto de vista moral entre Elon Musk e Capitão-Pátria (aliás, magistralmente interpretado por Antony Starr), mas sim chamar a atenção para a necessidade de mecanismos regulatórios que protejam a democracia contra eventuais riscos por conta das concentrações de poder em diversas instâncias da esfera pública, da vida social. Democracias sólidas não devem (ou ao menos não deveriam) ficar à mercê de supostas boas intenções de seus poderosos, mas sim aprimorar e amadurecer formas de regulação. Até porque, assim como os super-heróis em The Boys, todos posam de bonzinhos perante a mídia, que geralmente tem papel central como caixa de ressonância do poder, maquiando os poderosos, dando-lhes aquele verniz moral, para que pareçam belos e nobres aos olhos da opinião pública.
Cinema e HQs para pensar a sociedade
The Boys, de forma debochada e sanguinolenta, segue mostrando os riscos da concentração de poder. Mas vale lembrar que o assunto não é novidade nas histórias em quadrinhos e suas adaptações ao audiovisual. O universo cinematográfico da Marvel chegou a fazer essa crítica sobre o excesso de poder e a necessidade de mecanismos regulatórios ao adaptar para as telas a saga Guerra Civil, ainda que não de forma tão contundente como faz The Boys.
Em Guerra Civil, por conta dos danos provocados pelos combates, a organização das Nações Unidas decide estabelecer lei para regulamentar as ações dos heróis. O Homem de Ferro se posiciona a favor, mas o Capitão América se coloca contra. Outros heróis se juntam a ambos provocando um racha entre os Vingadores. Mais do que um conflito entre super-heróis, Guerra Civil promove um debate sobre segurança x liberdade, valores importantes para a vida em sociedade.
Para quem se interessar, a proposta de Guerra Civil é muito bem discutida no livro “Os Dois Lados da Guerra Civil – Análise Histórica e Filosófica do Maior Conflito entre Super-heróis”, de Bruno Andreotti, Adriano Marangoni, Iberê Moreno e Mauricio Zanolini [7].
Referências:
[1] The Boys: As maiores diferenças da HQ para a série da Amazon:
https://br.ign.com/the-boys-26/85104/feature/the-boys-as-maiores-diferencas-da-hq-para-a-serie-da-amazon
[2] The Boys: Diferenças e semelhanças entre a terceira temporada e as Hqs:
https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/the-boys-diferencas-e-semelhancas-entre-a-terceira-temporada-e-as-hqs/
[3] Entenda por que o Twitter está processando Elon Musk; batalha judicial começa nesta terça-feira
https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/07/19/entenda-por-que-o-twitter-esta-processando-elon-musk-batalha-judicial-comeca-nesta-terca-feira.ghtml
[4] Os bancos são covardes por Eduardo Moreira:
https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=-R8u-5PdEI4&fbclid=IwAR3vJiVkN7RXUzJpkguhDD6LvYGKJaDaBwm2NN685bCJMBG78waw2Rv87iY
[5] Silvio Meira: Um realista esperançoso:
https://revistapesquisa.fapesp.br/silvio-meira-um-realista-esperancoso/
[6] DAMASCENO, Natanael. Desinformação em Rede. MIT Technology Review. Ano 02, nº 87, abr/jun, 2022.
[7] Os dois Lados da Guerra Civil – Análise Histórica e Filosófica do Maior Conflito entre Super-heróis
http://editoracriativo.com.br/produtos/exibir/147/os-dois-lados-da-guerra-civil-analise-historica-e-filosofica-do-maior-conflito-entre-super-herois#.YxJiNHbMLIU