Antes de proceder à indicação audiovisual desta semana, é necessário que seja acrescida uma declaração de consciência, por parte deste redator: algumas vezes, aquilo que testemunhamos ao nosso redor é ainda mais atroz que os enredos de alguns filmes — não obstante, haver um intercambiamento imitativo entre eles. Assistir a um telejornal, por alguns minutos, provoca um desamparo e/ou sentimento de impotência similar àquele que experimentamos diante dos mais extremos filmes de terror, o que se confirma hodiernamente no Brasil, dado o absurdo que é o Projeto de Lei 1904/2024, no qual, entre outros intentos, deseja-se acrescentar o seguinte parágrafo: “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”. Ou seja, se esta torpeza legislativa for aprovada, uma mulher que deseja extirpar o feto proveniente de um estupro pode ser aprisionada por tempo superior ao seu agressor. Mais uma demonstração do quão misógina e anti-humanista é a extrema-direita política, infelizmente!
Feita tal declaração, aproveita-se a deixa terrorífica para indicar uma telessérie impressionante em suas proposições enredísticas, no sentido de que cada episódio possui uma espécie de “moral da história”, extensivamente válida para o espectador. Isso ocorre porque os roteiros abordam questões delicadas, não apenas sob o âmbito criminal, mas também advindas de crises existenciais. Trata-se de “Galeria do Terror” (“Night Gallery”), criada em 1969 e que foi exibida até 1973, engendrando noventa e três segmentos assustadores. O responsável por seu desenvolvimento é o lendário roteirista Rod Serling (1924–1975), mais conhecido pela série igualmente antológica “Além da Imaginação” (“The Twilight Zone”), cujo conceito surgiu em 1958.
Na verdade, o episódio-piloto de “Galeria do Terror”, é eventualmente considerado um longa-metragem, visto que possui noventa e cinco minutos de duração e foi exibido um ano antes dos demais episódios. Por isso, o analisaremos como um telefilme — de qualidade superlativa, acrescentamos. Dividido em três segmentos, “Retratos de um Pesadelo” (1969) constrói as suas prerrogativas de terror a partir de situações simples, o que impacta sobremaneira o espectador. O primeiro destes segmentos, “O Cemitério”, dirigido por Boris Sagal, é sobre um idoso rico, William Hendricks (George Macready), que fica semiparalisado após um derrame cerebral, comunicando-se prioritariamente através dos quadros que pinta. Vive com seu fiel empregado Portifoy (Ossie Davis), que se sente incomodado com a chegada do sobrinho indisfarçadamente oportunista do Sr. Hendricks, Jeremy (Roddy McDowall), que deseja acelerar a morte do tio, pois sabe que ele é o potencial herdeiro de suas riquezas. Seguir-se-ão intervenções de cariz fantasmático, que desencadeiam uma reviravolta cara às convenções deste gênero específico.
O segundo segmento, “Olhos”, é estreia na direção de Steven Spielberg, com apenas vinte e três anos de idade, e é protagonizado pela veterana Joan Crawford [1904–1977], que interpreta Claudia Menlo, uma milionária cega que mora na cobertura de um prédio luxuoso, alugado exclusivamente para si. Conhecida por seus comportamentos rudes e maquiavélicos, ela chantageia um prestigiado médico (Barry Sullivan), a fim de que ele realize nela uma cirurgia testada apenas em mamíferos de pequeno porte. O pretexto para chantagear este médico é ela ter descoberto que ele realizou um aborto ilegal, há alguns anos, de modo que a sua paciente morreu na sala de cirurgia, demonstrando que o problema em pauta aflige as mulheres de diversos países, há muitas décadas. Além disso, Claudia convence, mediante suborno, um homem com uma alta dívida de jogo a ceder as suas duas córneas, para que ela possa enxergar por apenas metade de um dia, após a operação desejada. Claudia, entretanto, deparar-se-á com “uma escuridão ainda pior que a cegueira”, conforme antecipa o mestre de cerimônias Rod Serling. Excelente início de carreira para aquele que se tornaria um dos cineastas mais influentes e bem-sucedidos de Hollywood!
Por fim, o terceiro e mais atordoante segmento: em “Rota de Fuga”, dirigido por Barry Shear, acompanhamos os pesadelos recorrentes de Joseph Strobe (Richard Kiley), um ex-militar nazista que se esconde em países sul-americanos, em permanente evasão, para não ser julgado pelas monstruosidades cometidas durante a II Guerra Mundial. Vivendo na Argentina, após fugir da Venezuela, Joseph é interceptado, no saguão de um museu, por Bleum, um judeu sobrevivente de campos de concentração (Sam Jaffe), que alega reconhecê-lo de algum lugar. Ambos contemplam dois quadros distintos, expostos no mesmo salão: um, horripilante (no qual um homem com os olhos esbugalhados é crucificado diante de um crepúsculo lúgubre); e o outro, pacificador (no qual alguém pesca num lago idílico). Mais tarde, em seu apartamento, Strobe incomoda-se com a presença freqüente de uma prostituta (Norma Crane), e, enquanto quase a estrangula, numa discussão, diz-lhe que “acostumar-se à dor é essencial para lidar com a vida”. Noutra situação, Strobe reencontra Bleum no museu, e este o persegue, reconhecendo-o e gritando que o que vivenciara nos campos de concentração foi “o maior aprendizado em termos de sobrevivência”, demonstrando que ele precisou matar, roubar e trair seus companheiros para continuar vivo, o que faz com que ele tenha envelhecido de maneira culpada. A derradeira seqüência do filme é atordoante, devolvendo-nos à constatação estabelecida anteriormente: o maior dos terrores é o que experimentamos na realidade — e os atos hediondos perpetrados nos espaços ocupados por representantes da extrema-direita confirmam isso. Estejamos atentos, quanto ao enfrentamento!
Wesley Pereira de Castro.
4 respostas
Eu amo “Além da Imaginação”. Certamente uma das coisas mais chocantes e extraordinárias que vi ainda na infância. Saber que essa trilogia de contos é roterizado por ele, dá uma antecipação do que virá e um “jumping” (sobressalto) de excitação. Há tempos deixei de assitir terror por justamente achar que os telejornais já nos são a ribalta para todo tipo de horror que a espécie humana é capaz de produzir. Porém os roteiros me intrigaram… Será que me atrevo novamente? Haha
Ótimo texto e excelente crítica de início, reiterada no final (estejamos atentos, principalmente à crueldade disfarçada de legislação)
Excelente texto. Parabéns, amigão!
Nunca tinha ouvido sobre essa série, agora estou curiosa. Que escrita linda!
Seus textos são muitos ricos de Informações, têm clareza de ideias (o que torna a leitura muito leve) e, principalmente, são muito instigantes. Sempre que os leio, fico desejosa de ver a produção audiovisual analisada. Semanalmente, sua escrita tem nos conivdados a refletir sobre temas que perpassam a vida fora e dentro das telas. Excelente!