O execrável caso de racismo envolvendo o jogador Vinícius Jr. no jogo entre Valencia e Real Madrid pelo campeonato espanhol, lamentavelmente, tem seus antecedentes. Um dos casos de maior repercussão ocorreu há nove anos, em 2014, com o jogador Daniel Alves. No dia 30 de março daquele ano, aos 30 minutos do segundo tempo de uma partida entre Barcelona e Villarreal, um torcedor atirou uma banana em campo, em uma clara provocação racista contra Daniel Alves, que teve uma reação inesperada: pegou a fruta do gramado e a comeu.
O caso teve muita repercussão, não só pelo ataque racista, mas pela reação do jogador. A revista Veja estampou Daniel Alves em uma capa com uma legenda bastante controversa: “Daniel Alves, da Seleção Brasileira e do Barcelona, comeu a banana, os racistas dos estádios escorregaram na casca e o preconceito quebrou a cara – talvez para sempre.”
O tom triunfalista da revista ao acreditar que o racismo havia sofrido um derradeiro golpe, derrotado “talvez para sempre”, era de quem aparentemente não havia se dado conta do quanto o problema está enraizado na sociedade – na Espanha, no Brasil e em outros países do mundo. Vinícius Jr. que o diga. O jornalismo, também ele, havia escorregado numa casca de banana.
Mas a polêmica (ou a escorregada?) não ficou no jornalismo. A repercussão da reação de Daniel Alves foi aproveitada para o lançamento da campanha publicitária “Somos todos macacos”, em que pessoas postavam selfies segurando bananas. Xuxa, Ivete Sangalo, Angélica e Luciano Huck foram algumas das personalidades a aderirem à campanha. Este último foi acusado de estar lucrando com o caso, já que sua empresa lançou produtos com a estampa, como camisas e canecas [1].
Outro que achou que a campanha “Somos todos macacos” era uma boa ideia foi ´Reinaldo Azevedo, colunista da própria revista Veja. Em sua coluna “A aula de Daniel Alves e Neymar de combate ao racismo. Ou: Também sou macaco!” [2], Azevedo elogiava a atitude dos jogadores. O primeiro, por ter comido a banana em campo; o segundo, por ter dado início à campanha, postando uma foto em rede social segurando uma banana, com a hashtag “#somostodosmacacos”.
“Por falar em Neymar, ele também fez a coisa certa. Publicou uma foto no Instagram, comendo uma banana, ao lado do filho. (…) Fez circular ainda a seguinte mensagem: ‘SOMOS TODOS IGUAIS, SOMOS TODOS MACACOS. RACISMO NÃO!!!!!’”, destacou Azevedo, em seu texto, sem explicar, no entanto, que a campanha “Somos todos macacos” era uma criação da agência Loducca e que a imagem postada por Neymar fazia parte da campanha.
O colunista continua. Demonstrando entusiasmo com a suposta habilidade dos jogadores no combate ao racismo, Azevedo acredita que as atitudes dos futebolistas brasileiros são mais acertadas contra o problema do que a produção intelectual da época. Para ele, Daniel Alves e Neymar, “que não se querem pensadores profundos — são mesmo é bons de bola, graças a Deus —, são mais sábios do que alguns intelectuais do miolo mole. É claro que acho que manifestações racistas, quando flagradas, têm de ser punidas. Mas a histeria politicamente correta só alimenta os idiotas.”
Azevedo não deixa claro quem seriam os “intelectuais de miolo mole” e nem o que exatamente seria a “histeria politicamente correta”, embora possamos deduzir quem e o que são ambos. É provável que os tais intelectuais criticados sejam aqueles que recorrentemente têm produzido sobre racismo estrutural e demais pautas genericamente denominadas como “identitárias”, cujas produções são, com frequência, rotuladas como “politicamente corretas”, em certo tom pejorativo.
Embora não seja a pretensão deste artigo abarcar o assunto, vale ressaltar que há discussões interessantes sobre o uso desse termo, como no caso de Alex Castro, que levanta a bola ao tratar do humorismo [3], defendendo haver uma certa contradição no uso do termo “politicamente correto” para se referir às causas de minorias desfavorecidas, haja vista que elas são contra-hegemônicas se comparadas à política vigente, há séculos dominada por homens, heterossexuais e brancos. Esta política vigente e tradicional, sim, por ser predominante há tantos anos, seria verdadeiramente a merecedora do rótulo de “politicamente correta”.
Também é interessante a posição de Moira Weigel, pesquisadora de Harvard sobre o tema, que defende que o “politicamente correto” é um “inimigo imaginário”.
Realmente não acredito que o politicamente correto exista. Você pode perguntar: mas então a que as pessoas se referem quando usam esse termo? É à linguagem que usamos e aos cuidados que temos quando falamos para não ofender ninguém. O que existe são formas diferentes de diálogo, de discurso, à medida que a sociedade se desenvolve e diversifica. Se você olhar para as universidades, como a da Califórnia, por exemplo, vai ver que, em meados dos anos 80, a maioria dos estudantes era branca. Isso mudou. A diversidade aumentou. Quando isso acontece, a maneira como você fala também muda e você passa a se preocupar em não ofender os outros. Não existe nenhuma organização política secreta forçando as pessoas a falar de certa maneira. [4]
Fato é que, apesar da empolgação de alguns, a campanha “Somos todos macacos” desagradou parte do movimento negro, que a considerou superficial, além de esconder a negritude e disfarçar a desigualdade racial [5]. Outro fato é que, passados nove anos do incidente com Daniel Alves e da campanha, mais casos de racismo envolvendo jogadores negros no futebol continuaram a acontecer na Espanha, no Brasil e em diversos países. A aposta da revista Veja de que o racismo poderia quebrar a cara para sempre confirmou-se como ingênua, lamentavelmente; e a campanha “Somos todos macacos”, que pareceu uma boa ideia para muita gente há nove anos, hoje soa ainda mais questionável e controversa.
Tanto a capa da revista quanto a campanha, cada uma a sua maneira, minimizaram o racismo, sua persistência, seu enraizamento. Rotular a militância e a produção intelectual antirracista como “politicamente corretas”, em tom pejorativo, também pode abrir caminho para a minimização do verdadeiro problema a ser enfrentado.
Relembrar a atitude de Daniel Alves e a polêmica da campanha leva a um questionamento: quais as melhores estratégias de combate ao racismo? Certamente as reações e campanhas antirracistas não podem ser ideias e atitudes que desagradem a própria comunidade negra. O que dá esperança é que, ainda que haja muitos casos de racismo, a reprovação aos racistas agressores tem sido intensa. O caso recente ocorrido com Vinícius Jr. e a reação indignada do jogador têm obtido apoio e estimulado cobranças por providências da parte da liga espanhola. A luta é grande e continua!
Referências:
[1] Huck se defende por camisa e diz: “não vou ganhar um tostão”:
[2] A aula de Daniel Alves e Neymar de combate ao racismo. Ou: Também sou macaco!:
[3] Carta aberta aos humoristas do Brasil:
[4] Estudiosa do politicamente correto afirma que ele não existe. É um “inimigo imaginário”:
[5] Para movimento negro, campanha “Somos todos macacos” reproduz racismo: