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Somos Bantu, mas não sabemos disso…

Somos Bantu, mas não sabemos disso…

Geralmente, quando alguém no Brasil menciona as “religiões de matriz africana”, está se referindo à Umbanda e ao Candomblé. Nesse caso, o reducionismo das nossas origens africanas é agravado pelo uso da palavra Candomblé, no singular, quase sempre como sinônimo do culto aos Orixás. Simplificando bastante, a escravidão no Brasil se fundamentou em 3 grupos étnicos diferentes, trazidos da África durante os 350 anos de escravidão.

O primeiro grupo veio da África central, da região onde estão hoje o Congo e Angola. Esse grupo foi genericamente chamado de Bantu e não foi apenas o primeiro a ser trazido como escravo para o Brasil colônia, mas foi também o que veio em maior número. Os Bantus influenciaram muito nossa cultura e religiosidade popular. Centenas de palavras cuja origem está nas línguas faladas por esses povos estão no nosso português coloquial, como por exemplo, camundongo, quiabo, moleque e bagunça.

Todavia, nos meados do século XVII, a necessidade de exportar tabaco produzido no Recôncavo Baiano criou uma rota direta de comércio de fumo e escravos entre Salvador e a Costa da Mina, na África. Dessa região vieram o segundo e o terceiro grupo étnico de escravizados que formaram toda nossa afro descendência. Até 1820 os Jejes eram a maioria no Recôncavo Baiano, mas a partir daí a etnia Nagô, que cultuava os Orixás, passou a ser majoritária. Assim os Nagôs foram os últimos a chegar, cerca de 70 anos antes da assinatura da lei Áurea.

Por que então, que a etnia Nagô se tornou a referência para a cultura afrodescendente, mesmo entre os afrodescendentes?

Os estudos sobre a cultura africana existente no Brasil como legado da escravidão só começaram em 1932, com as pesquisas de Nina Rodrigues, médico maranhense que se encantou com a cultura Yorubá e dedicou-se à sua pesquisa em Salvador – BA. Nina partiu do princípio que a cultura Bantu não era forte o suficiente para resistir às intervenções de outras culturas, tanto europeias como africanas, com que havia tido contato, e que por isso tinha desaparecido. Nina não saiu de Salvador, onde a maioria Yorubá no tempo de sua pesquisa era evidente e, apesar dos Bantus e dos Jejes estarem lá, ele não viu.

Mais ou menos na mesma época a Bahia, e particularmente Salvador, se tornam fontes de inspiração para parte da classe artística que vai influenciar o pensamento e a vida de pessoas de todas as classes, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, os principais polos da produção de critérios e da formação de opinião brasileiros, até a década de 1960. Havia Caribé na pintura, Jorge Amado na literatura, Pierre Verger na fotografia e na Antropologia, os irmãos Caymmi na música. Essas personalidades frequentavam terreiros do Candomblé Yorubá e sua arte vai mostrar essa realidade e ressaltar exotismo e a beleza do Candomblé promovendo uma “apropriação cultural” de alguns de seus valores, por parte, inclusive, da elite paulista e carioca. Gente que passava, por exemplo, a virada do ano novo bebendo uísque e champanhe importados nas coberturas em frente às praias de Copacabana e Ipanema e que, ao nascer do sol do 1º de janeiro, tirava os sapatos e ia para a praia jogar flores no mar, para Iemanjá.

De fato, a superioridade da etnia Nagô já era uma tese defendida no século XIX por uma elite de comerciantes e sacerdotes que circulavam entre os dois lados do Atlântico, mas a “romantização” da Bahia, iniciada nos anos de 1930 pelos artistas e escritores mencionados, influenciaram outras formas de arte como, por exemplo, a Bossa Nova, nas décadas de 1950/1960 que também contou com a participação de Dorival Caymmi. Essa foi uma das principais causas da transformação do Candomblé Yorubá da Bahia na referência quando se falava em cultos afrodescendentes. Entretanto, curiosamente, é o Rio Grande do Sul o estado em que mais há terreiros de Candomblé e Umbanda no Brasil. Se as pesquisas sobre a cultura africana no Brasil tivessem começado por lá, certamente teríamos conclusões e referências diferentes. Todavia, o Rio Grande do Sul assim com a maioria dos estados vizinhos foram os que mais esconderam seu passado escravocrata e a presença africana na construção da sua história. Diga-se de passagem, a obra de Érico Veríssimo é uma prova disso. Nela o negro raramente aparece e quando isso acontece, ele é fraco e covarde.

Por outro lado, e paradoxalmente, para vários pesquisadores, a Umbanda surgiu como uma forma branquear o Candomblé, retirando dele práticas consideradas “primitivas” como, por exemplo, o sacrifício de animais. Todavia, a despeito das investidas de uma elite branca que ligava a Umbanda ao Kardecismo Espírita, a ligação com a origem africana permaneceu forte e constante. A Umbanda mistura culturas Yorubá, e Bantu, e ainda a dos povos nativos, na figura do Preto Velho e do Caboclo, este, fruto do contato dos primeiros escravizados com os povos que aqui viviam e que, como os Bantus, cultuavam ancestrais. Assim, as tradições Bantu não só foram a base, mas também o catalizador de uma mistura de culturas africanas e indígenas, que entre outras coisas permitiu o surgimento da Umbanda.

A presença da cultura Bantu, alicerce da formação de uma comunidade negra forçada a vir para o Brasil como escravos, ainda é viva e se faz presente hoje, mas ela só é visível para quem quer ver.

Bibliografia

HALL, Gwendolyn Midlo. Escravidão e etnias africanas nas Américas. Petrópolis: Vozes, 2017

PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé – História e ritual da nação jeje na Bahia. São Paulo: Unicamp, 2018

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