Bastante elogiado pela imprensa norte-americana como provável indicado ao Oscar 2021 de Melhor Filme Internacional, a produção brasileira “Casa de Antiguidades” (2020, de João Paulo Miranda Maria) insurge-se como poderoso retrato de um país em ebulição conflitante. Uma radiografia devastadora da polarização extremada entre as regiões territoriais (e, por extensão, ideológicas) do Brasil, que acentuou-se bastante nas últimas eleições.
Tendo como assunto intermediário um projeto de emancipação nacional dos Estados sulistas do Brasil, este filme parte da dilaceração psicológica de um personagem para diagnosticar um fenômeno antitético que disseminou-se no país sob a expressão “pobre de direita”. O protagonista é Antônio Pitanga, que, no auge de seus oitenta anos de idade, entrega-nos uma interpretação bastante distinta de sua euforia habitual: está contido, oprimido, silencioso… Até que as condições externas obrigam-no a gritar, cantar um aboio de protesto!
Favorecido por uma direção de arte primorosa, o filme inicia-se num ambiente sumamente esbranquiçado, com a fotografia deveras estourada, em que diversos temas são rapidamente apresentados: trata-se de uma fábrica de laticínios (o branco, portanto, remete inicialmente ao leite), é um tratado sobre a dominação da branquitude (ou seja, a cor alva é também um indicativo de colonização racial) e é um filme eivado pela imagem-pulsão deleuzeana, pois sua trama localiza-se entre a extrema afecção e a ação interditada.
Segundo a definição do filósofo francês, a imagem-pulsão refere-se a uma situação imagético-lingüística que é muito mais que um estágio intermediário, possuindo “uma consistência e uma autonomia perfeitas, que fazem até com que a imagem-ação permaneça impotente para representá-lo, e a imagem-afecção impotente para fazê-lo sentir”. Mais à frente, ainda em “Cinema 1: A Imagem-Movimento” (publicado inicialmente em 1983), Gilles Deleuze [1925-1995] escreve sobre o contexto de eclosão da imagem pulsional, que seria “um mundo de uma violência muito especial (sob certos aspectos, é o mal radical); mas tem o mérito de fazer uma imagem originária do tempo, com o começo, o fim e a inclinação, toda a crueldade de Cronos”. Eis o que testemunhamos neste filme!
Em sua primeira aparição identificada, Cristóvão (Antônio Pitanga) é encarado por seu patrão alemão, Herr Kainz (Soren Hellerup), que reclama sobre as dificuldades de manutenção econômica da empresa. Segundo ele, precisará reduzir os salários de seus funcionários, para não diminuir os padrões de produtividade. A diva do cinema brasileiro contemporâneo Gilda Nomacce é a intérprete entre o alemão e o brasileiro, traduzindo de maneira impessoal o que é dito pelo facínora industrial. Atordoado, Cristóvão nem pode reclamar: precisa do dinheiro!
Segundo o seu próprio relato, o personagem é proveniente do interior de Goiás, mas vive numa cidade rural de Santa Catarina, onde a trama se passa. Cristóvão é um dos poucos negros que vivem na região, o que obrigatoriamente torna-lhe alvo de agressões e perseguições dos moradores locais – sobretudo as crianças, que chegam a atirar em sua cachorrinha. A casa em que Cristóvão vive é continuamente alvo de pichações e/ou de invasões por pessoas que desejam fazer sexo (inclusive, uma dupla homossexual). E ele suporta calado o cabedal de agressões a que é submetido. Até que a violência chega a um paroxismo insuportável.
Numa determinada noite, Cristóvão precisa defender-se de um imenso felino, com feições sobrenaturais, que invade a sua residência. Após assassiná-lo, em legítima defesa, percebe que trata-se de um dos adolescentes da região, procurado por seus parentes, assim que desaparece. Tentando esquecer o que aconteceu, Cristóvão fica atraído pela sedutora Jenifer (Ana Flávia Cavalcanti), filha de mãe solteira, que também difere das feições germânicas que abundam no local, não obstante os seus cabelos tingidos de loiro. No afã por aproximar-se dela, Cristóvão termina envolvendo-se sexualmente com sua mãe Jandira (Aline Marta Maia), o que desemboca numa belíssima cena de sucção vaginal. Mas a violência segue atordoando Cristóvão, que não consegue entregar-se adequadamente ao gozo ofertado…
Ao notar uma pichação na parede de seu quarto – “volte para casa, negro!” – Cristóvão encontra um pôster de vaqueiro colado por debaixo da tinta, e decide vestir-se igual a esta caricatura branca, numa tentativa sôfrega de readequação sobrevivencial. Mas é rejeitado ostensivamente: sua negritude é mais uma vez trazida à tona como elemento de rechaço naquela região. Se o Brasil como um todo é um país infelizmente racista, na região Sul, onde existem várias colônias de imigrantes europeus, o preconceito é ampliado, em suas facetas socioeconômicas derivadas. É comum ver nas paredes do local o número 17, que correspondia ao código partidário do então candidato Jair Bolsonaro, amplamente eleito no cenário que o filme descreve. É um diagnóstico da polarização derivada, portanto.
Se o visual de caubói não foi condizente com a tentativa de aceitação pública de Cristóvão, notamos que há uma outra figura por debaixo do pôster supracitado: uma pintura rupestre de um homem enfrentando um boi. E isso determinará a tônica protestante das derradeiras seqüências deste filme surpreendente, que ultrapassa o mero registro descritivo: ele possui um estilo específico de narrativa, e tem intenções políticas ostensivas, que são também estéticas. A direção fotográfica do chileno Benjamin Echarrazeta é absolutamente primorosa!
A derradeira imagem do filme é o olhar de uma criança, com uma escopeta em punho. Isso diz muito sobre a representação do “pobre de direita” anteriormente mencionado, que anseia pela falsa impressão de despertencimento em relação às condições precárias do local em que vive. Num delírio advindo de sua contumaz rejeição social, Cristóvão imita algo que tanto condena em suas lembranças juvenis: a violência perpetrada por seu pai contra a sua mãe. “Casa de Antiguidades” faz jus ao seu título, portanto: é o libelo anacrônico de um Brasil infelizmente atual!
Uma resposta
Fantástico e muito atual