Hoje resolvi escrever uma confissão. Coisa rara, pois escrevo pouco em primeira pessoa. Minha tecla preferida ultimamente é a de apagar. Entro numa discussão, escrevo vinte linhas, saio para tomar uma água, volto, reflito e concluo: não vale a pena.
Faço isso não como falsa modéstia, muito menos por covardia. Apenas que a cautela tem acompanhado os cabelos brancos, e minha impessoalidade literária decorre da reverência que nutro pelos que me precederam. Não posso (e por mais tentador que seja, não quero), inovar onde já há trilhas. Posso melhorar, diversificar, até ter a ousadia de refutar, mas não reinventar a roda.
E por que trago essa confissão?
Porque ao mesmo tempo que a internet deu vez e voz a uma multidão de anônimos, que hoje postam vídeos e textos numa velocidade assustadora, é exatamente essa velocidade que me coloca em alerta sobre a falta de reflexão daquilo que dizemos e compartilhamos. Reflexão e conhecimento. O mínimo que seja.
Recorro a uma história antiga para embasar minha prudência literária:
Certa vez, um pintor de nome Apeles, expôs suas obras num espaço público. Um sapateiro, ao passa por ali, notou que o artista havia errado na configuração de uns sapatos pintados no quadro.
Apeles, então, tirou o quadro da exposição para posterior ajuste.
No dia seguinte o mesmo sapateiro passa pela exposição e motivado pela crítica anteriormente aceita, decide opinar sobre as pernas e braços do modelo que figurava no quadro, ao que foi interrompido pelo artista, numa frase que virou símbolo de crítica ao senso comum: “Ne sutor ultra crepidam” [não vá o sapateiro além dos sapatos].
O que isso significa? Que o sapateiro deveria ater-se até onde sua competência técnica, sua visão de mundo permitia.
Sapateiro critica sapato. Se fosse para criticar partes do corpo, seria necessário alguém que dominasse a Anatomia humana.
Essa é uma história grega que atravessou séculos, inclusive a Idade Média, onde prevaleceu o dogmatismo sobre a criticidade. E no contexto atual, precisamos retomá-la.
Liberdade de expressão não significa inconsequência de expressão.
Os “achistas” (licença ao neologismo) saíram do submundo das orelhas de livro, dos cursos rápidos, tutoriais no YouTube para opinarem de cima do pedestal do “quase”: é quase ciência, quase senso crítico. Mas só quase.
Patrocinados por quem odeia a ciência, (até porque ela vai contra o culto ao ego), os “achistas”, em menos de meia hora, fazem uma análise “aprofundada” sobre os protestos no Chile, as eleições em Guiné-Bissau, a troca de técnico na seleção brasileira de futebol, a influência da carnaúba na economia do semiárido brasileiro, todas as opiniões seguidas de um “é assim que penso”.
Sim, você pode “pensar” assim numa roda de conversa num bar, entre cervejas e porções de peixe frito. Mas se pretende adentrar no fascinante, mas solitário mundo da ciência, precisa se desarmar do “na minha opinião” e assumir uma postura mais reverente, humilde. Em outras palavras: ir até os sapatos.
Ninguém diz que você não tem nada a oferecer às discussões. Pelo contrário, é no embate de ideias que surge a luz. Mas o método científico não abre espaço para o que eu quero que seja, por mais conveniente que possa ser.
“Ir até os sapatos” é respeitar a bagagem do outro, compreender que ele é o pintor e você é o sapateiro. Ninguém é melhor ou pior, ambos se completam.
Tenha o discernimento para ver o erro na pintura de um sapato e a humildade em não ter certeza se o braço ou a camisa estão errados. O pintor não foi à sapataria para ver como você prega uma sola, porque não é a ambiência cognitiva dele.
Acredita que pode contribuir mais com a pintura? Debruce-se sobre outros aspectos desta. Estude as tintas, tela, sombreamento… não lhe é negado tal direito.
“Na minha opinião” é um termo que morro de medo de pronunciar. Sei das suas consequências nefastas. Essa é minha confissão.
Vá até os sapatos ou siga meu conselho: usa cada vez mais a tecla “apagar”.
Crédito na Imagem: Pintura da artista brasileira Tarsila do Amaral, obra “Abaporu” (1928).