Ao comentar sobre o que o instigou a escrever o pioneiro livro “Guerra e Cinema”, o arquiteto e urbanista Paul Virilio [1932-2018] explica: “interesso-me pela câmera que serve para fazer a guerra. Eu vejo cultura onde aparentemente não existe cultura. Nós separamos demais a arte da técnica. Agora, temos que recolar arte e técnica, se quisermos compreender alguma coisa da nossa realidade”. De fato, é o que aprendemos no livro.
Publicado originalmente em 1984, esta obra elenca uma série de elementos históricos em que estratégias de guerra antecedem práticas cinematográficas: o uso de holofotes como artifício de intimidação durante bombardeios e a nada casual polissemia do verbo inglês ‘to shoot’ – que pode ser traduzido tanto como ‘atirar’ como ‘filmar’ – são apenas alguns exemplos imediatos, destacados num relato em que o tom subjetivo não oblitera um rigoroso trabalho de pesquisa. Informa o autor, ainda no capítulo inicial: “não existe, portanto, guerra sem representação ou arma sofisticada sem mistificação psicológica, pois, antes de serem instrumentos de destruição, as armas são instrumentos de percepção”…
Continuando a sua exegese, Paul Virilio constata que as armas – e, por extensão, o cinema – afetam “as reações e a identificação e diferenciação dos objetos percebidos”. E, neste sentido, o lançamento de um documentário como “Não Haverá Mais Noite” (2020, de Eléonore Weber) surpreende pela aplicação prática das teorias virilianas, numa conjuntura assaz contemporânea: é o corolário perfeito (e apavorante) do combate de narrativas, convertido em potenciais genocídios, que caracteriza a chegada ao poder das facções de extrema-direita, além de metonimizar a perene atividade destrutiva do imperialismo estadunidense ao redor do mundo.
Servindo-se de imagens captadas por pilotos-atiradores com câmeras acopladas a seus uniformes, em intervenções belicosas recentes no Iraque, Afeganistão e países congêneres, a diretora utiliza a narração da atriz Nathalie Richard para evocar um diálogo ensaístico entre ela própria e um soldado francês, protegido pelo codinome Piérre V., que assiste e comenta as imagens. Na tela, captações infravermelhas de pessoas sendo balisticamente alvejadas em plena escuridão. Podem ser pastores carregando ancinhos, podem ser conspiradores do Talibã portando metralhadoras: quando são mortos, convertem-se em meras estatísticas de guerra, nas quais o poder de observação do piloto-atirador é dominante. Exorta-se algo definido como a “cultura da dúvida”, em que os manipuladores das câmeras devem sempre desconfiar do que vêem, em razão da vertigem oriunda de ângulos captados a centenas de quilômetros. Mesmo assim, não é suficiente!
Ao longo do documentário, o alter-ego narrativo questiona o seu interlocutor inúmeras vezes acerca da possibilidade de ele sentir culpa por algum equívoco durante os disparos. Mas a assunção tangencial ocorre de maneira quase indiferente, como se fossem efeitos colaterais de um combate infindável. As imagens montadas pela diretora correspondem a recortes de “um filme sem fim”, em que nada pode ser apagado (sob pena de incorrer em delito militar) e nada é desconsiderado ou ignorado: por mais anódina que seja uma paisagem noturna, nela podem estar escondidos terroristas ou inimigos dos aliados norte-americanos. A câmera de guerra é, portanto, “um grande olho cuja pálpebra nunca se fecha”, e, do qual, não há lugar que possa converter-se num esconderijo seguro. É muito desconfortável – num sentido moral, sobretudo – assistir a estas imagens, por conseguinte.
Num dos momentos mais impactantes do filme, a narradora demonstra-se perplexa ao testemunhar imagens demoradas de crianças afegãs que brincam numa ladeira. Como a perspectiva da câmera possui uma cruz centralizada que serve como alvo, a diretora contamina-nos com seu espanto: “o atirador focaliza aquelas crianças como se estivesse a enquadrar um plano cinematográfico, esquecendo que a sua câmera é, na verdade, uma arma”. Impossível ficar indiferente, em especial quando cotejamos o que é mostrado no filme ao que acompanhamos diuturnamente nos telejornais!
Apesar da curta duração do documentário – apenas uma hora e dezesseis minutos –, o mal-estar que ele despeja permanece muito tempo após a sessão, visto que este filme em si é a hipertrofia da fórmula muitas vezes repetidas por Paul Virilio: “a guerra vem do cinema, e o cinema é a guerra”. Não são poucos os benefícios tecnológicos que advêm de instrumentos militares, popularizados após a descoberta de algo ainda mais apurado, mantido em segredo até que seja destrutivamente conveniente. Com a Internet foi assim. Com os mapas fotografados por satélites espaciais também. Os exemplos são infindos: jamais esqueçamos que estamos sendo vigiados neste exato momento. Por mais confinados em casa que estejamos, estamos sendo vistos, ouvidos e “interpretados” por inteligências beligerantes que consideram-nos traidores em potencial. As geniais imagens finais do filme que o digam!
Incapaz de atribuir encerramento fílmico a uma guerra que não tem fim, a diretora desiste do falso desfecho que seria acompanhar um determinado soldado após a sua provisória dispensa da atividade de guerra. Entretanto, ela assim o faz, enquanto reabertura narrativa de algo que também continua após a sessão: “onde houve a guerra, a paz não é mais possível”. Isso também vale para as lembranças dos espectadores, bem como para as captações familiares feitas através do telefone celular de um determinado soldado. Piérre V. alega nunca ter visto a morte de perto, por mais que já tenha testemunhado (e cometido) diversos massacres…
Na última sequência do filme, a diretora apresenta imagens noturnas filmadas num deserto norte-americano, cuja única “denúncia” de que não trata-se de iluminação solar estaria na visão do céu repleto de estrelas. Ao compartilhar o seu ambíguo deslumbramento frente a câmeras tão potentes, a narração fala sobre algo à mercê tecnológica dos poderosos: “o mundo da noite real e do dia falso”. Na guerra medíocre de narrativas ocorrida via mídias sociais, há quem defina oportunisticamente um assassino racista de 17 anos como “um cidadão de bem que defende seus direitos, seu patrimônio, sua família e sua vida”. Que noite pode haver depois disso?!