Imaginemos a seguinte situação: depois de duas noites dormindo na casa de seus patrões, onde não parou de trabalhar, uma empregada doméstica, já idosa, retorna para a sua residência. Mal abre a porta, nota algo estranho: vários objetos sumiram da sala, principalmente aqueles que possuem alumínio em sua composição. Sente fome e, após chorar, decide preparar algo para comer. Mas as panelas também sumiram! Seu filho mais novo, viciado em substâncias alucinogénas ilegais, vendeu os referidos pertences a um sucateiro, a fim de conseguir dinheiro suficiente para comprar algumas pedras de ‘crack’. Esta é uma situação que requer intervenção policial? Deve esta mãe cansada denunciar seu filho caçula à Polícia, mesmo quando ele a abraça, aos prantos, pedindo-lhe desculpas por não conseguir represar seu vício?
A resposta a esta situação – que está longe de ser imaginária, infelizmente: é dolorosamente real para milhares de pessoas, no dia a dia! – determina o grau de envolvimento que o leitor possui em relação àquilo que costuma-se designar pela expressão “drogas”. Para quem lida diretamente com as substâncias “expansoras do músculo cerebral”, há diretrizes emocionais que tornam secundárias ou até mesmo terciárias ou quaternárias as nuanças intervencionistas de cariz coercitivo. Ao invés de ser compreendida como um caso de polícia, a luta contra as drogas deve ser encarada como questão pública de saúde!
Abordar as variáveis – tramáticas ou documentais – referentes a este assunto é, portanto, uma questão muito delicada, em razão da tendência quase inevitável à criminalização. Sendo assim, o filme “Cracolândia” (2020, de Edu Felistoque) acrescenta alguns aspectos mui problemáticos a esta reflexão. Inclusive, porque uma breve análise da filmografia do diretor faz com que temamos aquilo que confirmar-se-á no primeiro instante: é um filme que escolhe a abordagem policialesca, a defesa das táticas de choque como necessidade emergencial de intervenção!
A região citada no título é uma espécie de trincheira urbana onde ocorre o consumo desenfreado de substâncias ilícitas, ao ar livre. Sobretudo o ‘crack’, conforme o nome sugere. Localizada no bairro paulistano de Campos Elísios, na capital do Estado de São Paulo, essa é também a região onde antes funcionava a zona conhecida como Boca do Lixo, que era tanto um ambiente de meretrício e roubos como uma área de muita criatividade (autogerenciada) do cinema brasileiro. A Cracolândia é costumeiramente exibida nos telejornais, por causa da aparência zumbificada de seus freqüentadores. É um local onde, inevitavelmente, a prostituição e diversos crimes justificam-se como estratégia de sobrevivência. E que, há tempos, merece uma abordagem documental minimamente histórica. Qual o percurso abordado pelo diretor Edu Felistoque? O do protagonismo de direita, como se fosse uma extensão das convulsões policiais que ele filmou anteriormente…
Servindo-se do cientista social Heni Ozi Cukier como cicerone, o diretor deixa evidente a prerrogativa moral de seu relato fílmico: a violência policial é aceita como francamente necessária e as medidas de “redução de custos”, levadas a cabo em países ricos e desenvolvidos, são consideradas como inaplicáveis à realidade brasileira. Por quê? Simples: porque o diretor converteu o consultor supracitado numa espécie de super-homem racional, que efetua todas as entrevistas, viaja à Europa e aos EUA, a fim de comparar diferentes tratamentos envolvendo dependentes químicos, e, ao final, assume-se como candidato a deputado estadual que, devidamente eleito, aprova, de maneira meritória, projetos de leis que aplicam-se à região citada no título do documentário. Partido político ao qual o deputado vinculou-se: Novo. Segundo um letreiro, suas propostas foram equanimemente aplaudidas por apregoadores de tendências ideológicas divergentes. Quem não sabe a cartilha do referido partido, que pesquise sobre ele…
A despeito do interessante recorte geográfico que serve de tema ao filme, os posicionamentos do diretor são claramente estabelecidos: os viciados têm as suas vozes ouvidas apenas em relances, em vídeos quase clandestinos. Dois depoimentos com conhecimento de causa são privilegiados, pois conseguiram reabilitar-se, ao exercerem atividades literárias e desportivas. Os ativistas participantes de uma Organização Não Governamental de apoio identitário aos moradores do local são deslegitimados em seus alegados equívocos militantes, visto que até o nome do movimento [“Craco Resiste!”] seria relacionado a algo imprestável. Segundo um dos entrevistados, os defensores dos direitos humanos estabelecem polarizações entre as pessoas, de modo que os “cidadãos de bem” seriam oprimidos, obrigados a ficarem confinados em seus lares. A cada instante fica mais e mais evidente que “Cracolândia” não é o documentário urgente que poderia ser, configurando-se numa extensão programática de moralismo partidário.
Ao final, a narração de Heni Ozi Cukier comenta: “tu podes até discordar em relação ao que foi mostrado aqui, mas, com certeza, tu irás refletir”. De fato, isso ocorrerá. Mas são poucos os momentos em que o documentário permite qualquer reflexão. A montagem é conduzida para que o deputado brilhe em sua práxis contínua: é mostrado descontraído em seu escritório, é acompanhado em campo/contracampo quando realiza as entrevistas com as autoridades e pesquisadores, e não esquiva-se sequer de assumir as perguntas de conotação capciosa, como quando dirige-se a uma assistente social norueguesa: “a redução de danos, por si mesma, não resolve o problema, não é?”.
Felizmente, a despeito de toda a malevolência do documentário, ele possui alguma validade enquanto contra-exemplo. A insistência em repetir que o que acontece na Cracolândia seria “uma semente do que ocorreu no Rio de Janeiro”, no que tange ao controle das favelas pelos traficantes de drogas, faz parte do discurso tendencioso do filme, que age de maneira similar ao esfacelamento dos brados de protesto que, numa comparação histórica, ocorreu nos Estados Unidos da América, durante a década de 1980: segundo uma hipótese bastante plausível, o FBI [Federal Bureau of Investigation] foi anuente em relação à disseminação de entorpecentes em bairros pobres e habitados prioritariamente por moradores negros, a fim de diluir a influência política de grupos como Os Panteras Negras, por exemplo. Será que isso deixou de ocorrer?
“Cracolândia”, enquanto filme, refere-se apenas tangencialmente à região nomeada, que é pouco explorada em seus aspectos históricos. A progressão diacrônica de eventos não interessa aos despejadores de moral exterminadora: como consta nas palestras eleitorais de vários dos políticos apresentados no filme, esta região é um tumor urbano na capital de São Paulo. Precisa ser extirpado. Não importa quantas pessoas morram ou o que financia o discurso de extrema violência. Quem já enfrentou no cotidiano a situação descrita no primeiro parágrafo desse texto, sabe que intervenção policial não é a melhor solução para lidar com o que é afetivo e que, por possuir caracteres socialmente patológicos, interessa ao Estado enquanto estratagema de “higienização demográfica”. Isso surge nalguns depoimentos do filme. É mister regressar a este assunto. Por ora, lamentamos a estrutura (i)moralmente cooptada deste documentário!