Quando as indicações à trigésima quinta edição do prêmio Goya (considerado “o Oscar espanhol”) foram anunciadas, em 02 de fevereiro de 2021, um fato causou rebuliço entre os críticos: o longa-metragem “Adu” (2020, de Salvador Calvo) recebeu treze indicações, dentre as vinte e uma candidaturas às quais lançou-se. Ainda que não seja o favorito à obtenção dos principais prêmios, este feito quantitativo justifica a necessidade de falarmos um pouco sobre este filme…
Visto superficialmente, “Adú” é exitoso ao transladar as fórmulas sensacionalistas de dramaticidade hollywoodiana para o contexto industrial espanhol: por mais interessante que seja, a trilha musical de Roque Baños investe nos exageros xaroposos, no afã por angariar a comoção imediata do espectador, que fica inevitavelmente enternecido diante da candura de Moustapha Oumarou, intérprete infantil do personagem-título…
Não obstante o sobejo de carisma, o sofrimento do pequeno Adú é quase terceirizado na lógica narrativa do filme, que entremeia três estórias paralelas, que não chegam necessariamente a unificar-se, apesar de pontos eventuais de contato, como a bicicleta que serve como tênue elo concatenador. É tudo excessivamente fetichizado na abordagem roteirística, que manipula o olhar do espectador para uma contínua efusão, direcionando-nos observacionalmente para a impressão de torcida: “tomara que tudo dê certo, ao final”…
Logo na abertura, conhecemos Mateo (Álvaro Cervantes), guarda civil da cidade de Melila, que serve como fronteira estendida entre o Marrocos e a Espanha. Tentando conter uma rebelião de imigrantes, enganchados nos arames farpados da enorme cerca que caracteriza esta região fronteiriça, Mateo testemunha a morte de um refugiado congolês, que é agredido por seus colegas de farda. Trata-se de um acidente decorrente dos ânimos exaltados, mas o roteiro apressa-se em abonar o personagem ibérico da responsabilidade moral por esta morte. Haverá um julgamento, mais à frente, e Mateo evita prestar declarações para uma advogada. De antemão, esta talvez seja a subtrama mais equivocada do filme!
Ao mesmo tempo, numa reserva florestal em Camarões, o ambientalista Gonzalo (Luis Tosar) tenta impedir que um elefante seja assassinado por caçadores de marfim. Ele lidera uma Organização Não Governamental de proteção aos proboscídeos e comumente envolve-se em conflitos com os moradores locais. Ao deparar-se com o elefante morto, não permite que a carne seja distribuída entre os aldeões. “Isso aqui não é um açougue”, reclama, antes de incinerar o corpo. É tratado com hostilidade pelos habitantes, que incomodam-se pelo modo impositivo com que ele tratas as questões ecológicas e pela arrogância de “homem branco querendo dizer como os negros devem se comportar”. É bem-intencionado, mas também estouvado. Precisará sair do país, antes que seja ameaçado de morte…
Como se os problemas de Gonzalo não fossem suficientes, ele precisará acolher a sua filha Sandra (Anna Castillo) por algum tempo, em razão de ela estar sob o jugo de questões complicadas referentes à sua drogadição. Ele aproveitará a oportunidade para aproximar-se dela, que é extremamente teimosa (herdou o temperamento difícil do pai, comenta ele numa dada oportunidade) e insiste em interagir com os malandros locais: flerta com os empregados africanos do pai, dança com desconhecidos em festas que varam a madrugada e aceita uma imitação plástica de marfim, onde esconde substâncias ilegais. Gonzalo é um moralista, afinal.
Numa conversa corriqueira, Gonzalo presenteia a sua filha com uma bicicleta que estava abandonada no local onde deparara-se com o elefante morto. Esta pertencia à irmã de Adú, Alika (Zayiddiya Dissou), que brincava na floresta e testemunhou o crime cometido pelos caçadores. Quando a mãe das duas crianças é assassinada, Alika e Adú resolvem fugir para a Europa, escondendo-se no compartimento das rodas de um avião. É quando o roteiro assume de vez a conotação assistencialista, convertendo esta fuga desesperada e impensada na “busca por uma vida melhor”, conforme aparece nos créditos de encerramento.
Se, em termos ritmicamente narrativos, “Adú” permanece entretenedor e agradável, em relação aos seus posicionamentos políticos e morais, ele demonstra-se reprovável em inúmeros aspectos, pois não esconde seus abundantes recursos de manipulação, servindo-se de câmeras lentas e de música altissonante, a fim de comover epidermicamente o espectador. A entrada em cena de Massar (Adam Nourou), refugiado somali adolescente que Adú conhece numa delegacia senegalesa, torna tudo ainda mais delicado, em razão de Massar recorrer mais de uma vez à prostituição sodomita, à qual define eufemisticamente como um ato de mágica. Quando Adú está prestes a ser estuprado por um pedófilo, depara-se com o lado mais doloroso dessa “magia”, o que poderia desencadear uma crítica às tendências evasivas de apresentação dramática. Porém, o filme prefere aderir novamente ao sensacionalismo formulaico: a música aumenta, e Adú e Massar fogem para a Mauritânia. Logo eles estarão no Marrocos, e torceremos para que consigam atravessar a fronteira de Melila, a nado. É quando Mateo, Adú e Sandra finalmente compartilharão um mesmo ambiente, e olhar-se-ão de relance, em instantes separados. Não haverá comunicação, entretanto!
Dito isso, ainda que “Adú” seja um filme simpático e bem realizado, aborda a questão dos imigrantes africanos para a Europa de maneira simplista e genérica. O desfecho é vago e covarde, como quase todo o acompanhamento dramático do roteiro, que detém-se de maneira exacerbada nas dificuldades previsíveis de relacionamento entre Gonzalo e Sandra. Como ocorre em tantas situações similares, convertidas em notícias de jornal eventualmente lidas pelos guardas de fronteira, Adú, Alika e Massar tornam-se figurantes estatísticos nas tragédias que eles próprios vivenciam. O filme tem culpa nesse processo, infelizmente… Que venham os prêmios!
Wesley Pereira de Castro.