EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

Red pills x blue pills: maniqueísmo e tabu em um debate delicado

Red pills x blue pills: maniqueísmo e tabu em um debate delicado

Neste artigo, quero falar sobre uma discussão que frequentemente me incomoda, pelo tanto de exagero, militância e enviesamento político, da parte de adeptos e de críticos: a discussão que envolve os tais movimentos masculinistas, dentre eles, a red pill. Farei essa análise a partir de um episódio de podcast que se propõe a criticá-los, para reforçar que as críticas a esses grupos também têm lá os seus problemas: exagero, militância e enviesamento político.

De acordo com o vocabulário masculinista, os red pills seriam homens que despertaram para a realidade a respeito de um sistema que favorece as mulheres. Desconsiderando muitas e muitas evidencias sócio-históricas da dominação de mulheres por homens em tantas sociedades patriarcais, esses homens se veem portadores de um conhecimento privilegiado e não acreditam nas relações com mulheres.

Ao contrário, os blue pills seriam homens que ainda não viram a verdade, portanto continuam a viver uma ilusão, dominados e usados pelas mulheres. Blue pills e red pills são uma analogia retirada do filme Matrix, na qual o protagonista precisa decidir entre tomar a pílula azul, que o mantém preso em um mundo de ilusão, ou a pílula vermelha, que o faz ver a realidade como tal. No extenso vocabulário masculinista, há ainda outras categorias e cores: black pills, sigmas etc.

Depois de tantos canais dedicados a “filosofia” red pill, surge um dedicado à blue pill. O Bluecast. Aparentemente, uma proposta vinda do humorista Thiago Santinelli para zoar os reds. Os blue pills seriam, ao que me parece, homens identificados com uma esquerda identitária (na falta de um nome melhor que me ocorra).

O viés político é bastante forte nessas discussões envolvendo grupos masculinistas. E assistindo a um episódio do canal Bluecast, em que Santinelli entrevista a militante comunista/feminista Carolline Sardá sobre “O que é ser homem” [1] (de início me pareceu estranho, já que ela é uma mulher. Mas ok, vá lá…), me lembrei do porquê não gosto dessas discussões sobre movimentos masculinistas e em geral acho tudo bem ruim.

Geralmente são discussões de 8 contra 80. Explico: do lado da red, culpam as mulheres por tudo, há muita misoginia e muita, mas muita pseudociência. Como bobagens sobre macho “alfa” e macho “beta” que tiram do mundo animal e tentam aplicar à força no comportamento humano social. Há também um forte reforço de papeis de gênero, por vezes apelando às pseudociências (pra variar), como quando dizem que certas atividades podem gerar desequilíbrios ampliando energias masculinas ou femininas [2] (por exemplo, não seria recomendável aos homens lavar a louça, pois isso reforçaria uma energia feminina nesses homens). Os mais radicais da red pill possuem um discurso que pode embasar violência doméstica e contra mulheres, inclusive há uma campanha em curso para desacreditar a Lei Maria da Penha. Soma-se a tudo isso a adesão a todo tipo de radicalismo de direita.  

Mas, por outro lado, dentre os principais críticos da red — que em geral são alinhados a uma esquerda identitária — o discurso é construído sempre de forma a romantizar a mulher e blindá-la de qualquer crítica, e daí vira um tabu posicioná-la enquanto partícipe de quaisquer processos de marginalização masculina (e aqui não falo em “culpa” da mulher, mas em “participação”, daí a palavra “partícipe”. Esse ponto precisa ficar bem claro!).

Em mais de uma hora de conversa no tal episódio que assisti do Bluecast, Carolline Sardá, Thiago Santinelli e Ítalo Costa apontam a culpa da frustração masculina para os próprios homens, os pais desses homens, o machismo e principalmente o capitalismo. A parte da responsabilização do capitalismo é bastante reforçada. Acho essa parte interessante, porque gosto de discussões e pesquisas que apontem para o quanto questões socioeconômicas atravessam nossos relacionamentos afetivos. Isso significa que nesse ponto — o capitalismo como principal culpado pelas frustrações masculinas — eu até concordei com o que ouvi.

O problema é que em mais de uma hora de conversa, enquanto apontavam os culpados pelo crescimento dos movimentos masculinistas, Sardá enfatizava — com o aval de seus colegas —  que as mulheres não têm nada a ver com isso, que o problema é do capitalismo mesmo e é isso aí. Simples assim! Ou seja, assim como outros debates e textos semelhantes que vi sobre o assunto, à esquerda, constrói-se uma narrativa maniqueísta, como se o capitalismo operasse independentemente das pessoas; como se mulheres e capitalismo fossem ambos totalmente apartados. Nem por um minuto sequer Sardá toca no ponto do quanto o comportamento feminino e a visão feminina de mundo e de relacionamentos são também atravessados pelo capital (e olha que estamos falando de mais de uma hora de bate-papo).

Mulheres não são seres etéreos. Elas vivem em sociedade e naturalmente incorporam valores, preconceitos e discriminações dessa sociedade. E reproduzem isso nas várias instâncias da vida, incluindo os relacionamentos e, dentre eles, os relacionamentos com os homens.

Sendo assim, falar que o problema da frustração masculina é o capitalismo significa falar também do quanto mulheres criam uma valoração dos homens baseada, por tantas vezes, no aspecto financeiro, de modo que aqueles homens com menor poder aquisitivo valem menos como homens, e, aqueles com maior poder aquisitivo valem mais. Fora outras formas de valorações, como raciais, estéticas etc.

Aliás, o youtuber Ricardo Thomé, que certa vez debateu com Sardá, tem vídeos interessantes sobre a questão racial do ponto de vista masculino em relacionamentos com mulheres [3]. Thomé, que é negro, fala sobre como pesa nos ombros de homens héteros negros o estereótipo nos relacionamentos amorosos/sexuais, de modo a terem que se encaixar no tipo “negão-sarado-jogador-de-basquete” ou no tipo “bem-sucedido” (ou ainda em qualquer intercessão entre esses dois tipos), caso contrário, sobra para eles a invisibilização e insucesso enquanto parceiros. É o tipo de discussão que pouco se vê em círculos de esquerda liberal (por que será?) e que Thomé, por ser negro, fala com certa propriedade.

E assim, a narrativa de Sardá cria uma dicotomia falsa na qual o “capitalismo malvadão” está de um lado e, as mulheres, de outro. Sem mistura, sem intercessão e sem nuances. Aliás, é preciso ser justo. A narrativa não é só dela. Santinelli e Costa estão ali, não como mediadores ou entrevistadores, mas como colegas de prosa, fazendo uma triangulação com Sardá na qual um levanta a bola para o outro a todo momento, como em um jogo de compadres.

E assim qualquer crítica ao comportamento feminino vira tabu nos círculos mais à esquerda. A despeito de tabus que tentam minar os debates, a psicologia social tem, sim, indicativos de que, enquanto homens se focam muito mais na aparência física na escolha de parceiras, as mulheres se focam muito mais no status social dos parceiros [4]. Dentre estudos recentes, um que achei interessante, feito com amostras de mais de 100 países, concentrou-se na sexualização de mulheres em redes sociais. O estudo encontrou relação entre a quantidade de selfies sensuais postadas por mulheres e a desigualdade econômica: os resultados sugerem que as mulheres investem mais na beleza quando percebem que recursos valiosos estão mais concentrados nas mãos masculinas, como forma de acessar esses recursos, e que a quantidade de selfies sensuais femininas aumenta em sociedades com maior desigualdade econômica [5].

Por outro lado, para evitar que caiamos em preconceitos ao pensar sobre a relação entre sexualidade feminina e capital, é preciso considerar o tanto que o patriarcado e milênios de dominação masculina influenciaram e influenciam nas relações socioafetivas. As últimas décadas foram de grandes e louváveis avanços na direção da igualdade de gênero, mas os comportamentos – de homens e mulheres – ainda não estão no mesmo compasso das mudanças, gerando certa confusão. “As mulheres eram socializadas de forma a serem dependentes e, por isso, podiam fazer certas exigências com relação ao nível social do homem em troca. Sair deste papel não é fácil e a mudança não ocorre em apenas duas ou três gerações depois de milênios de submissão”, explica o psicólogo Oswaldo Rodrigues Jr., do Instituto Paulista de Sexualidade. Ele afirma que “As mulheres tendem, sim, a estabelecer um relacionamento em que o homem seja financeiramente superior” [6].

Segundo a psicóloga Valéria Meirelles, a ala feminina ainda continua com posturas antigas, apesar dos avanços. “Elas acham feio quando o homem aceita dividir a conta. Querem as vantagens da modernidade com os benefícios da tradição” [6]. Obviamente, os movimentos masculinistas captam essas incongruências. E discutir esses movimentos deve incluir discutir essas incongruências com franqueza.

Mas o material aqui analisado, o episódio do Bluecast, trouxe o mesmo maniqueísmo de sempre que me deixa a sensação de ver um papo de camaradas pregando para convertidos. Se a intenção for engajamento em militância, aí o tom panfletário maniqueísta até que faz sentido. Mas se a intenção é convencer jovens que estão com um pé na Deep Web ou em quaisquer círculos masculinistas a pularem fora, acho que seria preciso menos maniqueísmo e mais honestidade e problematização.

Como nem tudo está perdido, em meio a tanto debate e conteúdo embotados de militância e polarização, ainda é possível achar material crítico que se safe. Destaco o artigo “Guerreiros Estoicos, Red Pill, Resiliência e Juventude Abandonada”, de Aldo Dinucci, professor de filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS) [7]. Sem partir para fórmulas fáceis/engajadoras, como fazer condenações morais aos adeptos da red pill, Dinucci, assim com Sardá, também aponta o capitalismo como um potencial culpado pelo sofrimento de uma boa parcela dos homens jovens, mas não exclui expressamente a participação feminina nos processos de marginalização, como se pode perceber neste trecho:

Primeiro, entendo que a vida não é nada fácil para a juventude atual: falta de empregos formais (quantos não são os entregadores de comida, os motoristas de Uber), condições terríveis de vida para os pobres (sem saneamento básico, sem lazer, sem educação, sem saúde, sem perspectiva), condições de isolamento para os mais abastados.

Não é difícil imaginar por qual razão um jovem pobre de periferia se sentiria um beta: na TV e na tela do computador veem os corpos esculturais de mulheres consideradas superatraentes. Veem também os milionários, com seus supercarros e lanchas, acompanhados sempre de mulheres como aquelas. Os jovens dos condomínios de classe média, por outro lado, têm acesso à mesma realidade virtual. Ambos os grupos não se sentem à altura de se engajarem em uma relação amorosa correspondida, seja com as mulheres idealizadas pela mídia, seja com as que espelham essas idealizações da sociedade de consumo. Assim, saindo à rua e tendo na memória a lembrança das imagens do mundo virtual, não é difícil que um destes conclua que ‘Não sou nada, Jamais serei nada, Não posso sonhar em ser nada’. E efetivamente é esta a mensagem que veiculam em muitos de seus vídeos.

Quem lê o artigo de Dinucci percebe que o comportamento feminino, também atravessado pelo capital (e porque seria diferente?), acaba por se tornar uma caixa de ressonância da marginalização de muitos homens, ainda que não seja essa a intenção das mulheres: ressoa no campo sexual e afetivo a marginalização socioeconômica, dobrando essa marginalização.

O panfletismo das militâncias é pouco sensível a nuances. E isso gera dificuldades para se discutir o tema.

Referências:
[1] O que é ser homem?
https://www.youtube.com/watch?v=stFtLn4F-l0

[2] Energia masculina e feminina | Existe? Como surgiu essa ideia? A quem esse conceito serve?
https://www.youtube.com/watch?v=M4XjV2gBbxg

[3] Invisíveis no mercado: masculinidade negra e o problema da palmitagem
https://www.youtube.com/watch?v=0fpqBA2cSi8

[4] O parceiro ideal
https://www.instagram.com/p/CoSW9xFp9tS/?img_index=1

[5] Blake, K. R., & Brooks, R. C. (2019). Status anxiety mediates the positive relationship between income inequality and sexualization. Proceedings of the National Academy of Sciences, 116(50), 25029-25033.
https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1909806116

Blake, K. R., et al. (2018). Income inequality not gender inequality positively covaries with female sexualization on social media. Proceedings of the National Academy of Sciences, 115(35), 8722-8727.
https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1717959115

[6] Mulheres preferem homens com dinheiro? História ajuda a responder
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2013/02/20/mulheres-preferem-homens-com-dinheiro-historia-ajuda-a-responder.htm?fbclid=IwAR1vaGDEu5dTrDHECCfifkuitS9uaJLXFHIczNxZjUu4LmhNTocZZfL18JI

[7] Guerreiros Estoicos, Red Pill, Resiliência e Juventude Abandonada
https://anpof.org.br/comunicacoes-leitura.php/coluna-anpof/guerreiros-estoicos-red-pill-resiliencia-e-juventude-abandonada?cat=coluna-anpof&code=guerreiros-estoicos-red-pill-resiliencia-e-juventude-abandonada&fbclid=IwAR0Scden3TVGDJTWWxb1FHNep3dRfo5hoEfRTXmnmlA2iBnt7aJohmhywc0

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]