Quando as cenas de divulgação de “Licorice Pizza” (2021) começaram a ser compartilhadas, os fãs do cineasta estadunidense Paul Thomas Anderson ficaram em polvorosa: afinal, tratava-se do anúncio de mais uma obra inequivocamente autoral, em que o diretor convoca alguns colaboradores recorrentes para demarcar uma elegia setentista, com forte elã romântico. E, de fato, a feitura deste filme é tão cuidadosa e estilizada que, ao longo de suas duas horas e treze minutos de duração, experimentamos a sensação estendida de paixão adolescente. Amadurecemos junto com os personagens, portanto.
Não obstante os méritos deste novo trabalho do realizador de “Boogie Nights – Prazer Sem Limites” (1997), “Magnólia” (1999) e “Sangue Negro” (2007) serem evidentes, algumas preocupações ideológicas precisam ser destacadas, visto que, em linhas gerais, trata-se do romance entre um garoto de quinze anos e uma moça com vinte e cinco anos de idade. Ele é interpretado por Cooper Hoffman – filho do cultuado ator Philip Seymour Hoffman [1967-2014], que participou de vários filmes do diretor –, enquanto ela é vivida pela cantora Alana Haim, de quem Paul Thomas Anderson já dirigiu alguns excelentes videoclipes. Como era de se esperar, ambos estão excelentes em cena, visto que o diretor é conhecido pela maestria com que conduz o seu elenco – e, neste caso recente, ele também conta com as presenças de Tom Waits, Bradley Cooper e de uma breve aparição de sua esposa Maya Rudolph.
Reconfigurando elementos e recursos narrativos que foram adotados em “Embriagado de Amor” (2002) e “Vício Inerente” (2014), obras que alguns cinéfilos consideram atípicas em sua coerente filmografia, “Licorice Pizza” passa-se no Vale de São Fernando, região de Los Angeles em que o diretor cresceu e que ficou famosa pela produção de filmes pornográficos. Estamos em 1973, e os longas-metragens de sexo explícito começam a invadir as salas tradicionais de cinema. É nesse cenário que conhecemos os dois protagonistas.
Filho da proprietária de uma agência de publicidade, Gary Valentine é um adolescente que goza de certa popularidade, pois participa de algumas telesséries sediadas em Nova York. Durante a espera para ser fotografado num ritual escolar, Gary fica fascinado por Alana Kane, tão logo a vê pela primeira vez, trabalhando como assistente dos fotógrafos. A despeito da diferença de idade visível, ele a convida para jantar – e ela aceita. Poucas sequências depois, ela o está acompanhando numa turnê de filmagens e resolvem juntos abrir uma empresa que vende colchões d’água. Gary torna-se o patrão de Alana, por conseguinte.
Apesar de o enredo do filme ser quase secundário em relação à habilidade com que o diretor domina os elementos cênicos, há algo de muito problemático na maneira como Gary manipula Alana, sobretudo quando começam a surgir questões relacionadas ao ciúme, já que ambos decidem flertar com outrem: Alana, por exemplo, permite-se ser seduzida por um personagem que caricaturiza o ator William Holden [1918-1981], numa interpretação intencionalmente exagerada de Sean Penn. O tom das situações é sobremaneira cômico, pois o que interessa é a dinâmica da relação de intimidade erigida entre Gary e Alana.
Um dos traços mais característicos do estilo andersoniano é o modo como diversas sequências são costuradas através de uma trilha musical onipresente, que invade homogeneamente tanto os instantes dramáticos quanto os cómicos: se, em suas brincadeiras directivas com a obediência às convenções hollyoodianas, a “montagem invisível” parece dominante, o modo subversivo como a trilha sonora surge instaura uma confusão intencional de sentidos. Não por acaso, é Jonny Greenwood quem, mais uma vez, foi contratado como compositor, enquanto artistas como Nina Simone, David Bowie, Sonny & Cher, Paul McCartney e Donovan têm suas canções executadas em momentos-chave.
Indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original, onde é o favorito na categoria, a trama deste filme é inconstante: tudo acontece muito rápido, e de maneira um tanto inconsequente, como se fosse uma emulação do modo adolescente de resolver/enfrentar os problemas. Gary é cercado por ajudantes ainda mais novos que ele, enquanto Alana é contratada como uma espécie de babá multifuncional de todos os empregados púberes. Até que ela resolve tentar uma ocupação empregatícia independente, fundamental para a conclusão da trama, inevitavelmente romântica. Não cabem aqui os julgamentos de valores, ainda que sejamos obrigados a comentar o machismo que atravessa toda a narrativa…
Na segunda metade do filme, as situações enfrentadas pela personagem Alana demonstram-se mais relevantes em sua assunção política (num viés partidário reconstitutivo): o filme aproveita-se muito bem de chistes relacionados a uma crise petrolífera durante o governo Nixon, mas é suspeitoso que um beijo e a declaração de amor definitiva aconteçam depois que um personagem homossexual reclama, aos prantos, que “todos os homens são cretinos”. Ainda assim, como evitá-los? [vale lembrar que a frase entre aspas no título deste artigo foi proferida pela própria Alana, após um jantar de família, quando ela descobre que um namorado fortuito não lhe contara que é ateu!]
Fotografado pelo próprio diretor (em parceria com Michael Bauman, que já trabalhou como chefe de iluminação em obras anteriores do cineasta), as imagens deste filme destacam-se pelas emanações brilhantes e solares – por sua vez, textualmente direcionadas, sob forma de elogios, à personagem Alana. Tecnicamente, é um filme primoroso, malgrado distanciar-se da rigidez dramatúrgica que foi adotada no sublime “Trama Fantasma” (2017). A conjunção agridoce de sabores prometida no título é bem servida, ainda que as fatias isoladas sejam mais deliciosas que a refeição cinematográfica como um todo!
Wesley Pereira de Castro.