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Preso por suposto roubo de bala e chiclete: minha experiência pro bono na advocacia criminal

Preso por suposto roubo de bala e chiclete: minha experiência pro bono na advocacia criminal

Allen Silva e Raphael Andrade Sousa (LinkedIn de Raphael é https://www.linkedin.com/in/raphaelsousalegalcounsel/)

Em certos momentos precisamos dar voz para outras vozes ecoarem suas reflexões. Por isso, trago novamente um texto do Raphael Andrade Sousa, que é vencedor do Prêmio Architects of Meritocracy – The Apollo Project, promovido pela InterLaw e Financial Times – Top Five Legal Counsel of the Year, pela LACCA – Eleito um dos cinquenta melhores Advogados Corporativos do mundo na área de Investigação e Compliance pela GIR In-House 50. Membro da Society of Corporate Compliance and Ethics – SCCE – Membro da Latin American Corporate Counsel Association – LACCA e Membro da Comissão de Direito Econômico da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio de Janeiro.

Espero que gostem da reflexão.

Consideramos essas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.

Na madrugada de sexta para sábado, recebi ligação de uma amiga, pedindo ajuda para uma audiência de custódia. O caso era de roubo e corrupção de menores. Como se tratava de família humilde, explicou-me logo que teria que ser pro bono. Não tive dúvidas em aceitar a oportunidade! O caso era, no mínimo, estranho. Segundo Auto de Prisão em Flagrante, meu cliente dirigiu veículo para que menores de idade praticassem crime de roubo de balas e chicletes (tridente, halls, bala Juquinha, etc.). O valor da mercadoria não chegava a R$ 100 (cem) reais!

Tentando entender a dinâmica dos fatos, descobri o que efetivamente havia acontecido. Na sexta-feira, meu cliente, de 22 anos, havia ligado o aplicativo para trabalhar na Uber. Pouco antes de sair de casa, encontrou com amigos de infância, que ainda são menores de idade, que haviam pedido para levar até a praia, que eles estavam prestes a chamar um Uber de qualquer forma.

Meu cliente, então, aceitou a corrida. Porém, na Avenida das Américas, os menores, que eram passageiros, resolveram furtar a mochila de um vendedor que estava vendendo balas no sinal. Desceram do carro, pegaram a mochila e entraram no carro, ao que o meu cliente, motorista, dirigiu normalmente e, no caminho, segundo depoimento dos próprios menores, insistiu para que a bolsa fosse devolvida.

No curso do caminho, parou num posto de combustível, tendo sido preso em flagrante por policiais militares. Na delegacia, foi lavrado o Auto de Prisão em Flagrante pelos crimes de roubo e corrupção de menores.

Umas das coisas que mais me chocou em toda essa história – que certamente precisa de um processo para efetivamente apurar toda participação e/ou inocência do meu cliente, foi justamente a audiência de custódia, realizada no último sábado, dia 28 de setembro. Confesso que tinha sido minha primeira experiência em presídio. Nunca havia atuado na advocacia criminal para pessoa física e tampouco havia experienciado os horrores de um sistema prisional.

Ao chegar ao presídio José Frederico Marques, em Benfica, logo notei o drama diário de familiares que ficam ao lado de fora do presídio, em busca de notícias de seus parentes presos e/ou à procura de algum advogado que lucra no infortúnio e nas mazelas sociais.

Confesso que, se eu fechar meus olhos, ainda consigo ouvir os gritos, choros e lamentos daqueles familiares. Minha mente ainda registra com precisão as gélidas expressões faciais de um povo assolado por todo tipo de miséria, tragédia e luta. Povo que suporta o escárnio dos poderosos, as chicotadas de seus senhores-patrões, as condições subumanas de moraria e ainda veem sua posteridade, seus filhos, condenados à igual ou sorte pior, sem educação, sem direitos materiais, sem Estado. Filhos cuja ausência total do Estado e da Sociedade Civil apenas perturbou ainda mais suas mentes já transtornadas com a vida, toda violência, com execuções, com a fome e com desigualdades sociais.

Dentro do presídio, pude conversar com meu cliente num parlatório, uma sala onde um vidro separa os advogados dos presos. Ao entrar na sala, pude ver diversos presos que clamavam por alguns segundos de atenção. Enquanto buscava meu cliente, todos eles questionavam se eu não poderia ajudá-los. “Doutor, pega meu caso, por favor”, disse um. “Posso trocar uma palavrinha com o senhor, doutor? Só pra explicar meu caso”, disse outro.

“Pelo amor de Deus, doutor, me tira daqui”, gritou um ao fundo da sala.

Ao encontrar meu cliente, vi o choro de alguém que possivelmente estava na hora errada, no lugar errado e com as pessoas erradas. Sua filha, nascida prematuramente com 26 semanas, encontra-se internada em estado grave no hospital. Conforme laudo médico que tive acesso, dentre outras complicações, a recém-nascida está com hemorragia cerebral, tendo passado por diversas cirurgias. Dentre palavras, explicações, clamores e choros, ouvi com atenção sua história.

Tudo pronto! Estava na hora da audiência de custódia. Quando a d. Promotora ingressou na sala, logo percebi que aquele seria apenas mais um caso para a Promotoria; que meu cliente já tinha seu destino decretado; e que meu papel ali era apenas e tão somente figurativo.

Pela promotoria, foi dito que o indiciado “oferecia riscos à sociedade, às testemunhas e à vítima” e, por essa razão, a prisão em flagrante deveria ser convertida em preventiva. A juíza, então, me concedeu a palavra. Dentre tantos outros argumentos, expliquei que a dinâmica dos fatos mostravam que (i) meu cliente estava trabalhando; (ii) enquanto dirigia, não praticou qualquer ato e/ou participou das condutas isoladas dos menores; (iii) não se encontravam presentes os elementos do artigo 312, do Código de Processo Penal, haja vista trata-se de réu primário, com residência fixa, trabalho e família; (iv) na eventualidade, ainda que em sede de cognição sumária pudesse vislumbrar sua participação, o Auto de Prisão em flagrante demonstra cabalmente que ele estava apenas dirigindo, aplicando-se o artigo 29, do Código Penal, haja vista que sua participação fora ínfima; (v) o tipo penal não pode ser de roubo, haja vista a ausência material de violência e grave ameaça, posto que, conforme constou do próprio APF, a mochila havia sido puxada pelos menores, não havendo nenhuma ameaça; (vi) e, por fim, que todo essa celeuma era por causa de chicletes e balas, que custava no máximo R$ 100 (cem) reais.

Rejeitando nossos argumentos, a juíza entendeu que o indiciado oferecia periculosidade e que “a gravidade dos crimes ensejava a conversão do flagrante em prisão preventiva”. Durante a decisão da juíza, pedi a palavra para frisar que se tratava de suposto ROUBO DE CHICLETE E BALA. Ao que a juíza respondeu:

“eu sei, doutor. Isso está registrado aqui”.

Minha participação pro bono encerraria nessa audiência. Porém, fiquei tão transtornado com essa injustiça que decidi levar adiante essa história. Após dar a notícia para os familiares, e de tentar consolá-los com minhas palavras – mesmo sabendo que era insuficiente – dirigi-me à casa de minha amiga para, juntamente com ela, escrever a peça de Habeas Corpus, a qual fora rejeitada pelo mesmo Desembargador que, recentemente, havia concedido HC para acusado de tentativa de feminicídio.

Novamente, a justiça brasileira mostra sua total inversão de valores e descompromisso com a sociedade desprivilegiada.

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