“Não deveriam ter-lhe ensinado isso. Ela já sabe tanta coisa! As horas se juntam, fazem os dias, fazem os anos, e tudo vai passando, e os anjos depois não existem mais, nem no céu, nem na terra”. (Rubem Braga)
Steven Pinker, inicia seu célebre livro Os anjos bons da nossa natureza: por que a violência diminuiu afirmando que “podemos estar vivendo na era mais pacífica que nossa espécie já atravessou” [1]. Ele convida o leitor a uma escolha a respeito de como ver o tempo presente: “se enxergamos nosso mundo como um pesadelo de crime, terrorismo, genocídio e guerra ou como um período que, pelos padrões da história, é abençoado com níveis sem precedentes de coexistência pacífica”[2]. O professor da prestigiada Universidade de Harvard entende que o declínio nos níveis gerais de violência da humanidade sugere que os artifícios da civilização impeliram a raça humana em uma direção nobre, afastando-a de sua brutalidade original.
Pinker é cônscio de que a tarefa de comprovar sua tese e, assim, convencer o leitor é árdua. Segundo ele, as pessoas tendem a negar o declínio histórico da violência porque são cotidianamente expostas a esse tipo de raciocínio e imagem pela mídia e terminam lembrando mais dos eventos violentos do que das situações ordinárias e pacíficas do cotidiano. O psicólogo e linguista canadense, contudo, entende que talvez “a principal causa da ilusão da onipresença da violência derive justamente de uma das forças que levaram à diminuição da violência. O declínio do comportamento violento ocorreu paralelamente ao declínio de atitudes que toleram ou exaltam a violência, e as atitudes muitas vezes andam na vanguarda”[3].
Deixo de lado por ora a volumosa publicação de Pinker para me concentrar nesse último raciocínio: o declínio de atitudes de tolerância ou exaltação à violência resultaria no declínio da própria violência. Essa relação causal, espécie de domesticação do animal humano e seus desdobramentos, condiz com os preceitos da filosofia política de Hobbes, segundo a qual o contrato social que institui o Estado de direito seria condição necessária para que o homem não exterminasse a si próprio. O processo de superação (ou domesticação) dessa natureza violenta e suas repercussões sociais, ao que indicam os dados de Pinker, é longo e lento, mas de tendência contínua, desde que não haja eventos suficientemente poderosos para inflexionar a curva. Entre esses eventos figuram grandes guerras e revoluções ou fortes movimentos atentatórios ou negacionistas aos benefícios decorrentes do contrato social.
O otimismo de Pinker, ainda que acene como um longínquo alento ao terror, não chega, contudo, a contagiar o homem comum. O eu, o você, o ele ou ela, nós que vivemos a vida cotidiana prosaica, não conseguimos ver vantagem em saber que daqui a duzentos ou quinhentos anos o mundo será mais pacífico do que é hoje. Não nos deixamos contagiar por esse tipo de euforia porque sabemos que somos mortais e temos apenas algumas décadas de vida a gozar. Os que durarem muito, perecerão aos noventa e poucos anos, cem, talvez. E serão poucos. O caldo grosso da humanidade partirá muito antes disso, inclusive em virtude da violência, essa mesma que deverá estar significativamente reduzida em um futuro imprevisível.
Há uma distância irremediável entre o tempo que dispomos para viver e o tempo que a história demanda para enfim domesticar-nos como espécie. Por não podermos esperar é que clamamos tão urgentemente por paz e segurança. Temos medo, sim. Se o medo é intencionalmente amplificado pela indústria da comunicação para ganhar cliques e cifras ou para fazer girar toda uma cadeia produtiva que é dele dependente, essa é já uma questão de segunda ordem. Na linha de frente de nossas preocupações está a vida e ela ainda segue deveras ameaçada.
No Brasil, um país sem guerras ou revoluções, mata-se por ano uma média de 50 mil pessoas, a maior parte por arma de fogo. Nos últimos quatro anos, a violência ceifou aproximadamente 202 mil vidas, o que representa cerca de 36% da população de Lisboa e quase toda a população de Cascais, uma das maiores cidades de Portugal. Abrigando 2,7% dos habitantes do planeta, o Brasil respondeu por 20,4% de todos os homicídios ocorridos em 102 países no ano de 2021[4]. As causas de morte são tantas e tão vis, os meios tão cruéis, a incidência tão indecente que parece não ter fundo o descomunal poço da desumanidade em que nos encontramos mergulhados. Não há recanto verdadeiramente protegido dessa absurda avalanche de homicídios. O espectro da brutalidade paira incólume sobre este solo.
A torpeza homicida exibiu sua face mais abjeta em 5 de abril de 2023, quando crianças que brincavam no parque interno de uma creche na cidade de Blumenau, estado de Santa Catarina, foram barbaramente atacadas e assassinadas a golpes de machado por um homem de 25 anos. Quatro crianças morreram; quatro filhos únicos entre dois e sete anos de vida. Após o ataque, o homem caminhou lentamente por dois quilômetros até o batalhão de Polícia Militar e se entregou. Suspeita-se que estivesse em um surto psicótico.
Esse evento, ao mesmo tempo em que chocou o país, acelerou o crescimento de uma lamentável curva que já apresentava preocupante comportamento ascendente. No ano de 2023, antes do ataque à creche em Blumenau, o Brasil registrara quatro atentados a escolas em três meses. Depois de Blumenau, já houve seis casos em menos de um mês[5]. Na esteira de Blumenau, evento que parece ter sido um divisor de águas no fenômeno sociológico da violência escolar no Brasil, uma avassaladora onda de ameaças de massacres propalada por perfis falsos nas redes sociais (alguns dos quais de franca orientação nazista) passou a aterrorizar professores, pais e estudantes. Isso fez disparar o número de apreensões de instrumentos letais que meninos e meninas passaram a levar para a escola a fim de se proteger de um possível massacre. E segue a espiral, sem sabermos onde tanta insanidade irá nos levar.
Se a tese de Pinker sobre a correlação entre a redução dos níveis de violência e a redução da tolerância e da exaltação sociais para com essa violência estiver certa, seu contrário também deverá estar: mais tolerância e exaltação, mais violência. O Brasil dos últimos quatro anos – anos do governo Bolsonaro, onde o ódio foi plantado semente a semente com muito esmero e os anjos bons da nossa natureza postos a força a dormir – convida os pensadores sociais a testarem essa hipótese. Difícil será, porém, não cederem de pronto à robustez das evidências em seu trabalho de validação.
[1] PINKER, Steven. Os anjos bons da nossa natureza: por que a violência diminuiu. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 19.
[2] Ibid., pp. 19-20.
[3] Ibid., pp. 20-21.
[4] Dados extraídos do Anuário Brasileiro de Segurança Pública dos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022. Fonte: https://forumseguranca.org.br/, consultado em 14 de abril de 2023.
[5] Desses, dois não foram consumados porque o agressor foi contido antes do ataque.