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Pois rever é, também, reviver: a importância de (re)encontrar quem está mais à frente, no caminho!

Pois rever é, também, reviver: a importância de (re)encontrar quem está mais à frente, no caminho!

Não obstante a entusiástica aclamação, por parte da crítica internacional, ao filme “Nomadland” (2020, de Chloé Zhao) – que culminou no recebimento do Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza e nos prêmios Oscar de Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Atriz, entre tantas outras láureas –, foi reclamado que este longa-metragem registraria de maneira condescendente a estafante rotina de trabalho na empresa Amazon. Em certa medida, procede: o filme não se posiciona de forma ostensiva contra esse tipo de exploração do proletariado, mas talvez isso se deva às suas escolhas narrativas. Ele coloca-se radicalmente ao lado da protagonista: os subempregos aparecem como financiamentos eventuais de um estilo de vida marcado pela recusa dos acúmulos desnecessários…

Estas observações ficam ainda mais evidentes num segundo contato com o filme: quando o assistimos pela primeira vez, deslumbramo-nos perante os flertes documentais na direção de Chloé Zhao – que já servira-se dessa técnica em obras anteriores – e encantamo-nos com a impressionante entrega actancial de Frances McDormand, além do acompanhamento intimista da trilha musical de Ludovico Einaudi. Porém, a despeito do extremo realismo do filme, o registro é sobremaneira ficcional. Trata-se, aliás, de uma adaptação mui respeitosa do livro homônimo de Jessica Bruder, cujo subtítulo é “Surviving America in the Twenty-First Century” [ou seja, “Sobrevivendo aos Estados Unidos da América no Século XXI”].

Na revisão, presta-se mais atenção aos indícios espaço-temporais que associam o filme à contigüidade imediata em relação ao letreiro inicial, quando fala-se da extinção de um código postal correspondente a uma empresa de mineração que fechou na cidade de Empire, Estado de Nevada, onde vivia a protagonista. Com isso, a crise financeira que eclodiu em 2008 atingiu uma de suas mais graves demonstrações, de modo que vários dos nômades que interpretam a si mesmos no filme passaram por experiências semelhantes de falência, adoecimento e/ou luto.

Em dado momento, a personagem principal, de nome Fern, perambula solitária por uma das cidades que visita e passa diante de um cinema onde está sendo exibido “Os Vingadores – The Avengers” (2012, de Joss Whedon), o que possui o caráter de “piada interna” para os cinéfilos, visto que o próximo projeto da diretora Chloé Zhao é justamente um filme relacionado ao universo dos quadrinhos da Marvel: “Os Eternos”, programado para ser lançado no final de 2021…

Se existe algo em “Nomadland” que talvez mereça a alcunha de “propagandístico”, isso aparece através do viajante Bob Wells, que, desde 2015, possui um canal no YouTube onde estimula as pessoas a deambularem pelo País, a fim de libertarem-se tangencialmente da “submissão à lógica dos dólares”, conforme ele conclama numa das reuniões que são captadas no filme. Interpretando a si mesmo, Bob Wells chora ao lembrar do suicídio de seu filho e explica a Fern como isso serviu-lhe de estímulo para o modo de vida que apregoa como essencial para descobrir um tipo de camaradagem tornada não-recomendada pelo Capitalismo. Nesse estilo nômade de vida, exorta-se a prática do desapego material – ou melhor, um apego meramente temporário, coadunado à extrema usabilidade dos instrumentos – e a consciência de que as pessoas não despedem-se definitivamente: mais cedo ou mais tarde, todo mundo se reencontra. Por isso, em vez de “adeus”, deveríamos dizer “te vejo mais à frente, na estrada”.

Nas reuniões promovidas por Bob Wells, informações importantíssimas são transmitidas a quem quiser viver como Fern: dicas sobre aquisição de ferramentas, formas rápidas de trocar pneus e, sobretudo, estratégias para eliminação dos resíduos fisiológicos são compartilhadas entre os participantes, que, como a protagonista, sobrevivem graças a escambos amistosos e ocupações empregatícias sazonais. Neste sentido, quando a irmã da protagonista comenta que “o nomadismo é uma tradição norte-americana, tal como, antes, acontecia com os pioneiros”, o roteiro faz questão de reiterar isso de maneira tão didática quanto acolhedora. É um propagandismo benfazejo, portanto.

Magistralmente fotografado por Joshua James Richards – colaborador freqüente da diretora –, “Nomadland” revela-se tecnicamente irrepreensível, inclusive na maneira como a montagem conjuga planos longos em seqüências curtas, que dotam de dinamismo a ausência de trama, no sentido lato do termo. Ao invés de cumprir a fórmula S-A-S’ [Situação – Ação – Situação Transformada, que o filósofo Gilles Deleuze (1925-1995) atribuía à maior parte do cinema hollywoodiano], este filme prefere evidenciar as belezas do percurso, sendo mui meritórias as interações da protagonista em relação às paisagens, naturais ou de engenharia, com que se depara. Entretanto, o maior chamariz do filme é o seu aspecto eminentemente humano, sua declaração de amor às pessoas comuns, aspecto que surge como traço autoral na ainda curta mas assaz delicada filmografia da cineasta.

Aguardemos os projetos vindouros Chloé Zhao, portanto: seus filmes crescem bastante nas revisões. Afinal, revivemos através deles – não apenas por identificarmo-nos com seus personagens, mas por compreendermos o quão importante é a noção de alteridade. Em especial num país que carrega em seu nome o adjetivo “unidos”, mas que pratica racismo, xenofobia e outros preconceitos à revelia de sua própria Constituição inclusiva!

Wesley Pereira de Castro.

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