Por ocasião das eleições legislativas francesas, em curso na primeira semana de julho de 2024, foi amplamente noticiado que a extrema-direita obteve liderança considerável. Trata-se de um relato objetivo, sobre algo que efetivamente aconteceu, mas há um aspecto a ser avaliado nas entrelinhas desse tipo de notícia. Na edição de 18 de maio de 2024 da conhecida revista germânica ‘Der Spiegel’, uma suástica é enxergada por detrás das cores da bandeira alemã. Sobre a perturbadora imagem, uma pergunta: “não se aprendeu nada?”. Tudo isso nos leva a um questionamento básico: em determinadas situações, o mero registro jornalístico pode indicar cumplicidade em relação ao que é apresentado? Deixaremos a interrogação em aberto, não obstante a mesma ser respondida na prática, ao longo do que é publicado nessa coluna…
É nesse contexto que falar sobre um filme como “O Terceiro Homem” (1949, de Carol Reed) torna-se imprescindível. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e do Oscar de Melhor Fotografia, esta obra é conhecida, sobretudo, por causa de sua trilha musical (o famoso tema de cítara, composto pelo austríaco Anton Karas) e pela breve, mas onipresente participação do mestre Orson Welles [1915–1985] como ator. De repente, revela-se um drama sobremaneira existencial, como sói acontecer nas tramas do escritor Graham Greene [1904–1991], que, aqui, é também roteirista. Um filme obrigatório, em múltiplos sentidos. Tanto pela aura clássica, referendada pelos prêmios supracitados e pelos variegados elogios críticos, quanto pela efetividade de seu discurso.
No início, acompanhamos o autor norte-americano de estórias de faroeste Holly Martins (Joseph Cotten) chegando a Viena, capital da Áustria, no imediato pós-guerra. A cidade está em ruínas e, conforme compreendemos na narração de abertura, muito do que é comercializado ali é conseguido através do mercado clandestino. As pessoas estão empobrecidas e continuamente assustadas. Precisam mentir (ou algo pior) para sobreviver. Terreno provável para que ocorram assassinatos, portanto. E para que se descubra que entes queridos podem cometer crimes, direta ou indiretamente, mais ou menos como ocorre ao sabermos que amigos, parentes ou cônjuges possuem filiações bolsonaristas, neo-salazaristas ou propriamente nazifascistas. Dói!
Holly Martins fora convidado para esta cidade por seu melhor amigo, Harry Lime, que não via há quase uma década. Por estar desempregado, ele aceitou um emprego sobre o qual nada sabe, e fica chocado ao ser informado que Harry morrera atropelado. No funeral, ele conhece a namorada do falecido, Anna Schmidt (Alida Valli), por quem obviamente se apaixonará, e é interceptado pelo major Calloway (Trevor Howard), que lhe conta que Harry era um canalha, um falsificador de penicilina. Devido ao fascínio arrebatador exercido por seu amigo, Holly relutará em acreditar na vilania da pessoa que admirava desde a infância. Até que este reaparece, justamente interpretado por Orson Welles. Numa sequência memorável, no alto de uma roda-gigante, Harry é questionado se não sente pena de suas vítimas. Ele dispara: “olhe lá para baixo. Tu sentirias pena se um desses pontos parasse de se mover para sempre? Se eu te oferecesse vinte mil libras por cada ponto que parasse, tu dirias pr’eu ficar com meu dinheiro ou calcularia quanto poderia ganhar a partir de cada um?”. A pergunta é também direcionada a nós.
Para não estragar o impacto espectatorial de quem ainda não viu o filme, interromperemos aqui a narração sobre o que ocorre, daí por diante, mas antecipamos que, quase oitenta anos depois, esta obra-prima britânica diz muito sobre a realidade hodierna, sobre as eleições que estão apavorando a Europa (e, por extensão, o mundo inteiro), sobre os oportunismos diários e sobre as escolhas morais e éticas que precisamos fazer em nosso cotidiano, em atos quiçá circunstanciais. Que o filme não esteja disponível nos tradicionais serviços de ‘streaming’ é um problema à parte, que tem a ver com o projeto de apagamento da História, levado a cabo por vários serviços de comercialização fílmica — ao incutir “vícios” como a maratona de séries, para ficar num exemplo recorrente. Precisamos rever os clássicos, trazer os dilemas destas obras para o dia a dia, nos posicionar quanto às notícias, entender as razões dos atos cometidos por outras pessoas antes de julgá-las, assumir que somos humanos e que isso não deve ser medido apenas pela inevitabilidade dos defeitos, mas sim por nossa capacidade de semeadura e de manutenção do bem. Encerramos aqui a nossa pausa? De volta à práxis, urgentemente!
Wesley Pereira de Castro.
Uma resposta
Eu gostaria de usar duas palavras para expressar esse texto… Impactante e reflexivo. Impactante pelo tom que a crítica é feita, reflexivo porque explora aspectos atuais de de uma sociedade expressos numa fotografia “antiga”, tal qual a obra. Antiga, mas moderna. Como dizia Cazuza, “eu vejo um museu cheio de grandes novidades”. É como me sinto ao ver uma obra retratar a atualidade. Escrito com maestria, como o digno Wesley. Coragem!!!