EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

“Para os jacarés, o restaurante estará disponível assim que aterrissarmos!” – ou porque precisamos falar sobre os ditos “filmes ruins”!

“Para os jacarés, o restaurante estará disponível assim que aterrissarmos!” – ou porque precisamos falar sobre os ditos “filmes ruins”!

Na filmografia do mestre do terror Wes Craven [1939-2015], a produção de ficção científica “O Monstro do Pântano” (1982) soa como um corpo estranhíssimo: baseado numa revista em quadrinhos publicada pela editora DC Comics, este filme frustrou as expectativas dos fãs do personagem, mas imiscuiu um fascínio culpado em diversos críticos. O consagrado Roger Ebert [1942-2013], por exemplo, citando um dos diálogos, conclama os espectadores: “há beleza neste filme, se tu souberes observar”… E, de fato, há!

A despeito da tendência predominante em classificar os filmes em meramente bons e ruins, atribuindo-lhes cotações reducionistas que não levam em consideração as inúmeras possibilidades entre um e outro adjetivo, convém investigarmos as produções que vemos (e debatemos) de maneira orgânica, enfatizando o que pode ser apreendido das experiências espectatoriais. Trata-se de um conselho legitimamente bazaniano, que explica o porquê de obras defenestradas em seu lançamento converterem-se em objetos de culto, anos depois. Talvez seja o caso aqui.

Organicidade é o que não falta no enredo, aliás: sabemos que um cientista fôra assassinado enquanto desenvolvia um projeto governamental de bioengenharia nos pântanos da Carolina do Sul. A jovem Alice Cable (Adrienne Barbeau) é designada para substitui-lo, mas demonstra-se relutante acerca da rusticidade do lugar. Até conhecer um casal de irmãos cientistas, Linda e Alec Holland (respectivamente, Nannette Brown e Ray Wise), que comportam-se de maneira abnegada em relação à fauna e flora locais.

Alice logo descobre que há uma conspiração em curso, de modo que o malévolo Anton Arcane (Louis Jordan) deseja apropriar-se dos segredos científicos manuseados pelos irmãos, a fim de convertê-los em armas militares. Obcecado por orquídeas, Alec desenvolve uma fórmula que permite o surgimento de espécimes vegetais onde quer que as gotas dela entre em contato. Durante uma invasão de mercenários, Linda é assassinada e Alec tropeça sobre a sua própria fórmula, convertendo-se na criatura titular (agora, em caracterização de Dick Durock) e tenta impedir que Alice, por quem está apaixonado, seja capturada por seus inimigos.

O ritmo do filme é bastante cartunesco e o modo como a narrativa evolui é tão genérico quanto equivocado: as firulas são abundantes, sobretudo quando Alice conhece Jude (Reggie Batts), um adolescente simpático que gerencia posto de gasolina semi-abandonado, ou quando descobrimos as reais propriedades da fórmula esverdeada desenvolvida pelos irmãos Holland. Sendo assim, o enredo é um pasticho dos filmes de super-heróis, onipresentes na contemporaneidade.

Se, hoje em dia, o ótimo “Batman” (2022, de Matt Reeves), confirma a maturidade definitiva deste subgênero fílmico – elogiado tanto pelos críticos quanto pelo público afoito, que lota as sessões de pré-estréia, muitas vezes vestidos como os personagens – é interessante notar como uma produção lançada há quarenta anos chama a atenção justamente pelo que está além das convenções de gênero: o supracitado Roger Ebert menciona até mesmo a homenagem ao título original de um clássico de Werner Herzog, pronunciado por um carcereiro. A sinopse rasteira é mero pretexto para que percebamos outras relações entre os personagens e a realidade, com destaque para o clichê necessário do romance entre pessoas/criaturas completamente distintas – no caso, uma bela moça e um sujeito cientificamente deformado.

O desenvolvimento do roteiro (escrito pelo próprio diretor) acontece de maneira apressada, não havendo nada de surpreendente no modo como o filme termina – com a óbvia deixa para as continuações e/ou conversão em seriado televisivo (o que efetivamente ocorreu, em ambos os casos). Porém, os diálogos bem-intencionados e as menções à importância das descobertas científicas demonstram-se valiosos – principalmente, no cotejo com a conjuntura política atual, em que os delírios da extrema-direita foram vitoriosos em vários países. Numa conversa inicial com seus colegas, Alice alega que os governantes de seu país estão paranóicos em relação à sua participação no projeto em curso, ao que alguém retruca: “isso é o mesmo que interrogar se o papa é católico”!

Ainda que não seja um filme produzido com a intenção de ser engraçado, os momentos de humor involuntários são recorrentes: a maquiagem e os efeitos visuais são considerados risíveis, mas integram-se bem ao universo fantasioso e descompromissado da trama, não obstante as suas intenções discursivas assumirem alguma seriedade: “tudo parece um sonho, quando estamos sozinhos”, comenta Alec, numa declaração romântica para a sua amada Alice. Tal como aconteceu com outras obras rejeitadas, é um filme que foi reabilitado pelo tempo, principalmente por diagnosticar muito bem a era em que foi produzido: tudo neste filme tem a ver com o modo como acostumamo-nos a caracterizar a década de 1980!

Ao optarmos por essa indicação pitoresca, nossa intenção é valorizar aquilo que parece circunstancial, mas revela-se peremptóprio: conforme já foi exortado em mais de uma oportunidade nesta coluna, dedicamos suma importância ao ato de rever os filmes, ao reencontro com as obras de arte, à necessidade de voltar a experiências que decepcionaram-nos num contato inicial. Numa das seqüências mais carinhosas de “O Monstro do Pântano”, quando Alice reconhece a criatura como sendo Alec, ela pergunta como ele está suportando a amputação causada pelo golpe de um bandido armado com um facão. Ele brinca: “só dói quando eu rio”. Mais tarde, será ela que, utilizando uma observação botânica elementar, pede-lhe que deixe o braço vegetal à exposição da luz solar, para que o mesmo possa crescer novamente. Dá certo!

É assim que funciona também o acolhimento cinéfilo: é mister esforçarmo-nos para compreender por que, mesmo quando a trama ou os aspectos técnicos de uma obra são ostensivamente falhos, o discurso humanista pode redimi-la. Aconteceu aqui: em muitos sentidos, trata-se de um filme ruim – mas quanta inspiração em sua defesa dos monstros capazes de transformar positivamente a sociedade!

Wesley Pereira de Castro.

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]