Na introdução do livro “História do Cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno”, publicado internacionalmente em 2004, o crítico irlandês Mark Cousins escreve: “é útil imaginar o cinema evoluindo como uma linguagem ou replicando-se como genes, porque isso ilustra que o filme tem uma gramática e que, em alguns aspectos, ele cresce e sofre mutações”. Se isso vale para o objeto de estudo, é óbvio que também estende-se a quem debruça-se sobre ele. Ou seja: a cinefilia precisa estar consciente das condições socioeconômicas e políticas do momento histórico em que é desenvolvida.
Um dos maiores méritos deste livro, em relação aos seus congêneres contemporâneos, é a insistência de seu autor numa verve contra-hegemônica. Sem desprezar as produções hollywoodianas e/ou balizadas pelo eurocentrismo – que, numa taxonomia específica, correspondem ao que os cineastas argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino chamaram de Primeiro e Segundo Cinemas, respectivamente – Mark Cousins prioriza os filmes realizados por mulheres, negros, indígenas e outras categorias sufocadas pelo machismo estrutural da Sétima Arte. Em mais de uma maneira, o livro interessa aos pesquisadores de manifestações artísticas periféricas, antes obnubiladas nas publicações tradicionais sobre história do Cinema, que adotavam o mero cariz diacrônico.
Convertido num eficiente documentário, com mais de quinze horas de duração [“A História do Cinema: Uma Odisséia” (2011, de Mark Cousins)], as teses e anedotas contidas neste livro foram sobremaneira popularizadas, a despeito das críticas recorrentes ao subjetivismo do diretor e dos chistes envolvendo o seu sotaque carregado, já que ele narra o próprio filme – e fala compulsivamente. Malgrado a aparência de enciclopedista, Mark Cousins é um historiador de cinema comprometido, que merece a nossa atenção pelo zelo desmistificante e pela entrega passional ao seu objeto de estudo!
Outros documentários realizados por ele seguiram-se – incluindo um de quatorze horas de duração, sobre filmes dirigidos por mulheres, “Wonen Make Film: A New Road Movie Through Cinema” (2018), narrado por Tilda Swinton – até que, em pleno confinamento advindo da necessidade de conter o CoronaVírus, em 2020, ele realizou um projeto bastante pessoal, “40 Dias Para Aprender Cinema”, em que aborda de maneira ainda mais subjetiva as perspectivas teóricas de sua obra mais famosa. É um documentário incrível! Comentemos um pouco sobre ele, daqui por diante…
Bem mais curto que o habitual – durando cerca de duas horas e dez minutos – este filme recente demonstra, com muito bom humor, que a obrigação de quarentena, para fins preventivos, não desemboca inelutavelmente na deflagração do tédio ou na interrupção de estudos e lazer: servindo-se da etimologia numérica do termo, a proposta é publicizar um método prático de ensino dos elementos cinematográficos para cada um dos quarenta dias de confinamento. Mas o filme desenvolve um ritmo próprio, obviamente.
Assumindo a mesma perspectiva sincrônica do livro-base supramencionado, “mais focado no meio que na indústria”, Mark Cousins escolhe algumas palavras-chave, mas não cumpre a sua planilha à risca. Ele comenta os temas de maneira informal, concede alguns “dias de folga” aos seus alunos-espectadores e alguns dos capítulos soam mais como curiosidades que como aulas em si. Mas o documentário é sempre entretenedor e assaz instrutivo: apesar de gaiato, o crítico leva o Cinema muito a sério!
Depois de uma apresentação em que fala sobre si mesmo, mostra-nos algumas fotos pessoais e assume algumas de suas preferências obsessivas (além dos filmes dirigidos por mulheres, abundarão os documentários, geralmente de países orientais), o diretor, narrador e pesquisador inicia a sua jornada com um capítulo sobre cor. Usa como demonstrativo o documentário “Siddeshwari” (1990, de Mani Kaul), que possui enquadramentos impressionantes!
Seguem-se capítulos sobre a importância da linha dos olhos, sobre os filmes de casamentos, sobre os desenhos que transmutam-se em “O Mistério de Picasso” (1956, de Henri-Georges Clouzot), etc.. Por mais cinéfilo que seja o espectador, este inevitavelmente deparar-se-á com filmes desconhecidos e fascinantes, visto que o diretor cumpre com eficiência aquilo que intitula a sua vigésima quinta aula: “mostre algo que não foi mostrado antes”. Partindo de um aforismo bressoniano, ele critica a mesmice dos filmes em série e/ou formulaicos e impulsiona-nos a descobrir obras pouco conhecidas, seja por mero desleixo distributivo seja por motivos explícitos de censura ou interdição política. Os documentários sobre nazismo, canibalismo militar e denúncias de envenenamento industrial que ele enfatiza que o digam: estes filmes precisam ser (re)vistos coletivamente o quanto antes!
Em diversos momentos, a narração de Mark Cousins comenta o ruído de ambulâncias nas cercanias de onde vive, o que amplifica o valor documental de seu projeto: afinal, trata-se de um filme realizado num estágio ainda inicial do confinamento britânico, quando as mortes por COVID-19 eram numericamente acachapantes. A realidade insurge-se em meio às válvulas de escape imaginativo destacadas pelo crítico, que brinca com uma situação envolvendo “O Mágico de Oz” (1939, de Victor Fleming), um ideal pós-quarentenário. Mas ele insiste que o enfrentamento discursivo é imprescindível, e não ignora a potência política de sua atividade profissional, por conseguinte. Pratica o que convencionou-se chamar de “cinefilia orgânica”.
Esse aspecto politizado da atividade de Mark Cousins é ostentado de maneira ainda mais expressiva no trigésimo primeiro capítulo, intitulado “Campo de Refugiados em Lesbos”: ele não fala sobre nenhum filme, mas sobre a crueza que advém da observação das más condições de vida dos refugiados no local em pauta. Ele compara o estupor àquele que experimentara noutros campos de refugiados que pôde visitar, em viagens por zonas bombardeadas da Europa. O Cinema conduz-nos a uma melhor percepção do ambiente ao nosso redor, como explica poeticamente o cineasta alemão Werner Nekes [1944-2017], numa citação elementar: “se o amor é cego, o amor ao Cinema ao menos nos faz abrir os olhos”!
O capítulo final de “40 Dias Para Aprender Cinema” é justamente sobre liberdade. Após falar sobre música, rebelião, questionamentos da Verdade, mídia, começos, finais, memória, poesia, necessidade de evitar as banalidades e tantos outros assuntos, ele exorta-nos a pôr em prática o que aprendemos em nosso dia-a-dia, nas relações cotidianas com nossos interlocutores, vizinhos e amantes. Há um único capítulo dispensável no documentário, o trigésimo sétimo [“Recut”], que fala sobre filmes que, segundo o autor, ficariam melhores se fossem reduzidos em alguns minutos. Entre eles, a obra-prima brasileira “Limite” (1931, de Mário Peixoto). Sorrindo, o próprio crítico admite que seria atacado por causa deste capítulo: é mais um alívio cômico que uma opinião precisa. Não estraga o conjunto benfazejo, felizmente.
Estando o filme facilmente disponível em algumas plataformas de ‘streaming’ – justamente por causa da quarentena que ultrapassou, em muito, os quarenta dias iniciais – fica aqui a recomendação para que ele seja visto e discutido. É um ótimo ponto de partida reflexivo, no que tange à demonstração de um dos credos defendidos pelo autor, em seu livro mais famoso: “o Cinema é uma das formas de arte mais acessíveis. Portanto, até suas produções mais obscuras podem ser entendidas por um não especialista inteligente, o que considero que o leitor seja”. Idem quanto aos espectadores que verão o filme após lerem esta resenha improvisada…