O período que antecede as eleições estadunidenses costuma engendrar excessivo agendamento noticioso por parte dos veículos midiáticos. Não apenas no que diz respeito à rivalidade histórica entre republicanos e democratas, mas sobretudo pelo impacto social das causas defendidas enquanto pautas de campanha, e que interferem na geopolítica mundial. O vexatório debate que ocorreu na noite de 27 de junho de 2024, entre um encolerizado (e condenado) Donald Trump e um abatido e confuso Joe Biden deixou os audientes internacionais aflitos: como será que estes dois políticos lidarão com questões prementes, como a imigração? É a deixa para que recomendemos o contundente documentário “Lo que Queda en el Camino” (2021, de Jakob Krese & Danilo do Carmo)…
Co-produção entre Alemanha e Brasil, este filme acompanha a jornada da guatemalteca Lilian Florinda Hernández Lopez que, aos vinte e nove anos de idade, mãe de quatro filhos e grávida do quinto, esforça-se para chegar aos Estados Unidos da América, num percurso de quase quatro mil quilômetros. No letreiro de abertura, sabemos que a América Central detém números alarmantes de feminicídios e violências contra as mulheres, de modo que os motivos para Lilian empreender esta arriscada viagem são tanto nacionais (relacionados aos desmandos governamentais hodiernos, na Guatemala) quanto pessoais (o fato de ela continuar perseguida por seu ex-marido, apesar de já tê-lo denunciado à polícia e conseguir uma Medida Restritiva contra ele). E, para tal, ela junta-se a centenas de compatriotas, numa caravana de migrantes, esforçando-se para não deixar nada nem ninguém pelo caminho, conforme consta do título e no conselho de alguém com quem Lilian conversa numa das várias paradas da viagem.
Não obstante a crueza do ponto de partida sinóptico, os diretores evitam a espetacularização da miséria, que ronda esse tipo de produção: a direção de fotografia (a cargo de Arne Büttner e do co-diretor Danilo do Carmo) possui maravilhosas imagens crepusculares, enquanto o desenho de som do consagrado Rubén Valdes transporta-nos para aquelas estradas barulhentas e movimentadas, por onde Lilian, seus filhos e amigos caminham indefinidamente, sob um sol escaldante. Sentimo-nos íntimos dos personagens reais e condoemo-nos perante situações aviltantes, como a necessidade de mendigar moedas nas estradas, a fim de conseguir comer alguma coisa, ou as dificuldades relacionadas a necessidades elementares, como atos fisiológicos ou a descoberta de um lugar para dormir. A câmera é discreta, porém ostensivamente percebida pelas crianças, que a encaram em mais de uma situação: num momento assaz delicado, por exemplo, Lilian está vomitando, enquanto seus filhos pequenos olham para quem está filmando, como se estivessem pedindo socorro. Surge uma primeira interrogação documental: como se estabelecem os limites de interferência entre os técnicos responsáveis pela filmagem e as pessoas retratadas?
Diferindo das abordagens oportunistas, que objetificam os imigrantes ou aderem a um registro predominantemente comiserativo, os responsáveis por este filme concedem voz dominante a Lilian, que, num momento mui inspirado, finge entrevistar os próprios filhos, acerca de quais são as motivações deles para fugirem da Guatemala. A resposta do garotinho Noé impressiona: ao ser inquirido sobre quem lhe faz companhia na viagem, ele não pestaneja em responder “meu ursinho de pelúcia”. A ternura da garotinha Blanca é também graciosa, em contraponto à necessidade de considerar o primogênito Sérgio, com apenas treze anos de idade, como um “jovenzinho”. As dificuldades, tão cumulativas quanto inevitáveis, obrigam algumas pessoas a envelhecer mais rápido!
À medida que a viagem avança — e a duração do filme também, em seus noventa e três minutos –, a resiliência de Lilian fica mais e mais evidente: se, por um lado, sabemos que ela tenciona encontrar o seu namorado Jeremias, nos EUA, pai do filho do qual ela está grávida, por outro, surpreendemo-nos quando ela confessa que só casou com seu primeiro marido por exigência de sua mãe. O motivo surge logo em seguida: ela possui tendências ao lesbianismo, sendo uma “marimacho”, como brinca seu filho mais velho, que, noutro instante, quando ela é advertida por não conhecer Jeremias o suficiente, Sérgio brinca: “ela passou toda uma noite conhecendo-o”! A tônica que perpassa o documentário é o elã humanista, a proximidade em relação àquelas pessoas mui esforçadas, que se aventuram a pé, em caronas com desconhecidos, em caminhões superlotados, em ônibus e trens, no que quer que lhes possibilite avançar para a cidade fronteiriça de Tijuana, no México. Como termina essa história da vida real? Vale a pena conferir diretamente no filme, extraordinário em sua proposta de proximidade documental. Nos créditos finais, um dos filhos de Lilian brinca com o microfone, enquanto os demais dançam ao som da canção “En Caravana” (do compositor hondurenho Chiky Rasta), ao lado do “pai de caravana” Irving. Independentemente do destino alcançado (ou não), a jornada em si vale muitíssimo a pena — para o espectador, inclusive!
Wesley Pereira de Castro.