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Os veneráveis

Os veneráveis

Este texto evoca três aspetos da evolução humana nas últimas décadas, para refletir sobre o potencial de exclusão social de uma faixa populacional em crescendo: a das pessoas com 80 anos ou mais. Presentemente pais e avós de muitos leitores, e no futuro muitos dos atuais leitores, este grupo está em risco de não conseguir acompanhar o ritmo de mudança, o que pode levar a pregar mais um prego na discussão sobre inclusão/exclusão nas sociedades hodiernas.

O primeiro aspeto é a digitalização. Se há mudança que a pandemia acelerou nos últimos 18 meses, foi a digitalização nos negócios e na vida em geral. O teletrabalho e o ensino à distância não eram estranhos antes da chegada do COVID-19, mas o seu uso era modesto na maior parte dos países até 2019. A crise pandémica conseguiu em menos de dois anos o que governos e empresas não conseguiram em duas décadas: a adoção maciça e universal do trabalho e do ensino remoto.

A revolução na forma de trabalhar e de educar são apenas as expressões mais visíveis do rápido avanço das tecnologias digitais. De uma forma por vezes mais silenciosa, mas igualmente poderosa, as mudanças estendem-se a muitas outras áreas, adotando-se a letra “e” para designar o foco do digital: e-government, e-banking, e-commerce, e-business… Entretanto, a imaginação humana, imparável como se deseja, aplica o digital a outras áreas tradicionalmente analógicas: e-tourism, e-auction, e-fatura, e entretenimento online.

Concomitantemente com esta evolução, assiste-se a profundas alterações na matriz demográfica das populações, como sejam as crises migratórias, a relocalização geográfica, e o envelhecimento. Relativamente ao último, segundo projeções do INE, a população residente em Portugal pode passar dos atuais 10,3 milhões, para 8,2 milhões em 2080. Este declínio terá a estrutura seguinte: i) número de jovens diminui de 1,4 milhões para 1 milhão; ii) pessoas com mais de 65 anos aumenta de 2,2 para 3 milhões; e iii) população em idade ativa (15-64 anos) diminui de 6,6 para 4,2 milhões.

Um relatório das Nações Unidas de 2019 mostra um cenário semelhante noutras regiões do globo. Um grupo etário especial é o das pessoas com mais de 80 anos, normalmente incluídos no grupo dos 65+. De acordo com as projeções referidas, o grupo etário dos 80+ tende a duplicar ou a triplicar nas próximas décadas, à medida que também aumenta a longevidade humana.

O último elemento relevante para a presente reflexão é a mudança cultural, mormente a que se refere à forma como se olha para os mais velhos entre os mais velhos. Não obstante reconhecer que nem todas as sociedades tribais e/ou tradicionais tratam bem os seus seniores, Jared Diamond, um estudioso de civilizações, refere que o valor de uma pessoa com muita idade pode ser substancial, desde cuidar dos mais novos a participar ativamente nos processos produtivos da comunidade. A sabedoria e conhecimento acumulado são igualmente essenciais para a transmissão da tradição e da cultura de um povo. Em muitas sociedades antigas e em algumas regiões da Ásia, África e América do Sul, os mais velhos são respeitados, consultados, e dignificados. Eles são os veneráveis.

Diamond admite que o mesmo não sucede na América do Norte. Aí, tal como em outros pontos do mundo, a forte ética do trabalho e o enfoque no individualismo conduzem a uma desvalorização dos mais velhos, sobretudo quando param de trabalhar e/ou se tornam mais dependentes do sistema. Em culturas mais coletivistas como as do mundo lusófono (o site Hofstede Insights confirma a predominância do coletivismo, de Angola a São Tomé e Príncipe), os mais velhos ainda são valorados por todos os outros grupos etários, apesar dos sinais crescentes em sentido contrário.

Com efeito, observa-se com frequência que os comentários sobre as pessoas com mais de 80 anos, trocados em conversas por exemplo em Portugal, incluem frases como “ainda vive sozinho”, “vai todos os dias dar uma caminhada”, “está boa da cabeça”, ou “entretém-se com as suas coisas”. Estas expressões refletem a inquietação legítima dos mais novos relativamente à saúde dos mais velhos, mas mostram também que não mais se consultam os mais velhos para se aprender sobre a vida, sobre as tradições, e sobre a história. Ou simplesmente para saber o que pensam, o que lhes vai pela alma, e o que os motiva a continuar a lutar.

É muito provável que o desenfreio da digitalização exproprie ainda mais valor a este grupo etário, cujas dificuldades de adaptação à mudança são naturais, e tanto mais quanto mais veloz se torna a mudança. Vinay Pranjivan, especialista da DECO em proteção dos consumidores em matéria de serviços financeiros, escrevia em dezembro de 2021 para o Jornal Público que “a digitalização não pode significar a ausência de meios de prestação presencial desses serviços (…). O aumento exacerbado dos custos associados a movimentos ao balcão [pretende] dissuadir a sua utilização”.

A incapacidade ou impossibilidade de se ajustar ao e-mundo transforma os veneráveis em vulneráveis, ao mesmo tempo que expõe uma nova contradição neste admirável mundo novo: a vida analógica não pode nem deve ser esquecida, rejeitada, ou afastada. Fazê-lo é cortar com o passado e desdenhar a história viva.

Num curso recente sobre digitalização, o autor deste texto indagou os participantes, líderes e gestores de empresas finlandesas, sobre se haviam ultimamente questionado os seus pais e avós sobre o que os movia na vida. Sem surpresa, nenhum destes executivos se lembrava da última vez em que havia procurado saber de forma realmente interessada o que pensavam os seus familiares mais velhos, o que sonhavam, ou o que os inspirava no ocaso das suas existências.

O Natal representa tradição e cultura. Por isso, em 2021, caro leitor, em vez de perguntar aos vulneráveis da sua família como é que se sentem, como estão de saúde, ou se foram dar o passeio pelo parque, peça a esses mesmos veneráveis para lhe contar histórias do passado, escute os seus conselhos, e sobretudo tente compreender a magia que faz com que uma pessoa com 80 ou 90 anos continue a caminhar em frente. A estima percebida para essas pessoas resulta melhor com as segundas perguntas do que com as primeiras. E no processo, caro leitor, não apenas mostra aos mais novos o valor dos mais velhos, mas também talvez aprenda alguma coisa útil para si.

Referências

Diamond, J. (2012). The world until yesterday: What can we learn from traditional societies? NY: Penguin Books.

Hofstede Insights: https://www.hofstede-insights.com/country-comparison/

Pranjivan, V. (2021): https://www.publico.pt/2021/12/12/economia/entrevista/direito-acesso-numerario-mantido-custos-1988092

Portal do INE: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=406534255&DESTAQUESmodo=2&xlang=pt

World Population Ageing 2019, United Nations (Department of Economic and Social Affairs), acedido em dezembro de 2021, em: https://www.un.org/en/development/desa/population/publications/pdf/ageing/WorldPopulationAgeing2019-Highlights.pdf

Imagem de capa: by Pixabay

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