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Os media contra a experiência lusocommunitas

Os media contra a experiência lusocommunitas

No texto anterior tratamos da presença das forças immunitas agindo em forte oposição à ideia de uma communitas. Seja nos marcos da globalização seja na ilusão das velhas identidades nacionais, as ações que buscam impedir a experiência comunitária são concretas e viva entre nós. Um desses lugares, isto é, um ambiente onde as forças immunitas parecem transitar com folga é o campo dos media.

De saída, propomos a seguinte pergunta: as indicações de mundo que aparecem nas notícias cotidianas nos encaminham para o “sacrifício” de um compromisso, o assumir de uma dívida para o Outro, ou seja, levam-nos para a experiência da uma communitas, ou elas estimulam e reforçam as forças immunitas, da desobrigação, da isenção, tanto na lógica da globalização quanto dos grupos identitários xenófobos?

Faz-se necessário relembrar que os media nascem vinculados aos interesses da economia e da política. Eles surgem como folhas impressas, meios informativos de uma burguesia mercantil no século XII. Percebida como estratégica pelo Estado, a imprensa passou a ser uma peça importante para dar sentido a “comunidade imaginada”, a ideia de nação, e que se desenvolveu a partir da esteira das “descobertas” do mundo novo. Os media agem com outros atores sociais para dar forma ao mundo na lógica dos interesses políticos e econômicos.

As práticas mercantis, imperialistas e colonialistas, que marcam as histórias dos lugares lusófonos, são profundamente desagregadoras dos povos que falariam em português. A lógica das invasões em África e na América consistia em agir na separação dos índios e na destruição de suas nações, o mesmo ocorrendo com os negros capturados, escravizados e apartados dos núcleos grupais e familiares. A notícia da existência de quilombos, por exemplo, produzia uma mobilização de guerra para o arrasamento dessas organizações comunitárias. Até muito pouco tempo, índios e negros sequer eram vistos como seres humanos.

Concretamente, temos em nosso processo histórico o desenvolvimento de um valor social lusófono que é contrário à ideia de comunidade. Até as manifestações de resistência dos de baixo, dos índios, negros, dos mestiços pobres que, de alguma forma, agrupam-se comunitariamente, sempre foram justificativas para ações violentas e destrutivas dessas populações. As ações contra as experiências comunitárias nas áreas colonizadas sempre tiveram a concordância, o estímulo e o apoio dos media da Casa Grande.

No século XVIII, com o desenvolvimento das tecnologias de impressão, a abertura de estradas, a melhoria dos correios, as redes de notícias foram ampliadas, e o jornal passou a ser percebido como um instrumento estratégico, uma mercadoria a auxiliar na organização e no controle das pessoas, uma espécie de guia político e moral em cidades que ficaram mais complexas. Afirma Ortiz (2003, p. 35) que a imprensa era parte do conjunto de “coerção administrativa do Estado”, contribuindo na formação das consciências individuais e coletivas.

A partir do século XX, com os mediaeletrônicos, o jornalismo ampliou sua presença social, dando a ver, com mais nitidez, um mundo único e a redução drástica do espaço e do tempo. Giddens (2002, p. 12) nos relembra que a “experiência canalizada pelos meios de comunicação, desde a primeira experiência da escrita, tem influenciado tanto a auto-identidade quanto a organização das relações sociais”. Para esse autor, as convergências tecnológicas dos media foram um dos sinais da “alta modernidade”.

Os media acompanham de perto o avanço na integração dos mercados globais e a radicalização do capitalismo a atravessar decisivamente as economias nacionais. Com isso, eles deslocam suas atenções da comunidade nacionalizada para um mundo sem fronteiras, globalizado, moderno, em que o sucesso e a riqueza são méritos dos esforços únicos do indivíduo. Os media dão ampla visibilização ao modo de vida nos países ricos, tecnológicos, abertos, lugares de liberdade. “Os estilos de vida dos mais prósperos são, de uma forma ou de outra, exibidos à vista de todos e retratados como dignos de imitação” (Giddens, 2002, p. 184).

Essa intensa visibilização, pelos media, da vida dos mais ricos, poderosos, globalizados e que devem ser copiados e imitados implica também na reiterada visibilização do seu oposto, da vida dos mais pobres, dos hábitos primitivos e comunitários, atrasados, doentes, amorais, entregues por opção deles mesmos à corrupção, às ditaduras e aos rituais de feitiçaria. Para iluminar o desejado e o que deve ser rejeitado e combatidos, os media dispara para as audiências rápidas associações para definamos nossas pertenças e diferenças identitárias.

No jornalismo, por exemplo, uma das áreas em que essas questões identitárias possuem ampla visibilização indicativa, seja para o desejo e imitação, seja para a forte rejeição, é a da cobertura internacional. Por meio de seleções e do estabelecimento da lógica binária e econômica do mundo (rico X pobre), os Outros ganham materialidade geopolítica e uma exposição pedagógica para as audiências. Existe nos media uma evidente indicação dos padrões aceitos de pensamento, comportamento, consumo, de um modelo identitário a ser buscado e imitado, e um Outro a ser repelido, combatido e excluído.

Nos media, diz Motta (2002, p. 31), “por um lado, vemos refletir-se um padrão de vida burguês internacionalizado, expressões de uma sociedade de consumo plena, padrões de vida internacionalizada, comportamentos ‘modernos’ e vanguardas pós-modernas. […] Por outro lado, vemos expressões culturais semibárbaras, a miséria, a fome, o desespero, a tragédia humana, a violência rude, o exótico, o estranho, o inexplicável, o grotesco, expressões de nossa selvagem exclusão social, da miséria, de grupos marginais e da permanência entre nós de uma moral individualista, egoísta e oportunista”.

Diz Fürsich (2016) que o jornalismo apresenta reportagens internacionais que seguirão as doutrinas das políticas externas dos governos, baseando-se nas fontes e nos interesses das elites nacionais e internacionais. João Natali (2004, p. 32) lembra que “a história do jornalismo internacional é de algum modo a história dos vencedores”. É isso, os maiores media estão alinhados às lógicas, aos pressupostos e aos princípios do capital internacional.

O jornalismo internacional veiculados nos media é balizador de como devem se comportar os governos diante dos cenários externos. Por exemplo, governos que buscam interferir na economia, que se aproximam de países mais periféricos, que criam algum tipo de entrave à livre circulação e atuação dos mercados, dos bancos e das empresas multinacionais serão alvo de críticas e de campanhas condenatórias pelos media.

Vale destacar que a maior parte da cobertura noticiosa do mundo é alimentada por agências de informação, que, por sua vez, têm as suas sedes nos países mais ricos da Europa e nos Estados Unidos. E o lugar de onde se fala revela os modos de seleção, os conteúdos, as formas e aquele para quem se fala.

As agências de notícias, muitas patrocinadas pelo sistema financeiro mundial, distribuem os seus olhares geopolíticos, econômicos, culturais e identitários pelo mundo. No Brasil, salvo exceções, tomamos conhecimento sobre a África por intermédio das agências que têm suas sedes nos países europeus e nos Estados Unidos. As coberturas internacionais no jornalismo “miram apenas as elites cosmopolitas ricas; assim, a diversidade transnacional é produzida como uma celebração higienizada da cultura” (Fürsich, 2016, p. 55).

De maneira geral, os media propõem uma narrativa do mundo e, para isso, selecionam personagens e buscam determinar seus papeis em uma lógica que atenda aos interesses econômicos. A maioria dos atores incluída nessas coberturas internacionais configura o padrão de mundo moderno, economicamente rico e determinante, o que implica a rigorosa rejeição de quaisquer referências que possam ser associadas à pobreza, ao “terceiro mundo”, à comunidade. As imagens veiculadas nos media “retratam minorias como diferentes, exóticas, especiais, essencializadas ou até anormais. É um imaginário racista estabelecido historicamente como literatura e ciência coloniais” (Fürsich, 2016, p. 52-53).

Os media disparam um conjunto de elementos cotidianos que torna a diferença visível para fixá-la como diferença, prendendo-a em sua comunidade, fabulando sobre seus perigos e suas ameaças. O jornalismo, como diz Margarethe Steinberger (2005), age na manutenção de uma cultura colonial, em que muitas notícias são como “vestígios” a denunciar as matrizes históricas da dominação, o que faz ressaltar a nítida colonialidade jornalística.

Assim, essa reflexão nos faz perceber que os grandes media estão exercendo importantes forças immunitas.  Isso fica mais nítido na lógica da globalização, mas também pode ser observado nas retóricas e ações de grupos identitários xenófobos, principalmente localizados nos países desenvolvidos. Nesse caso, os media indicam narrativas para estimular e justificar o levantamento de muros, a expulsão dos imigrantes, a perseguição e a exclusão das diferenças.

Os media assumem a condição immunitas na medida em que, tanto na globalização quanto nos grupos identitários mais fechados, estão a propor uma experiência da desobrigação com o Outro, seja o indivíduo seja a coletividade. Os media indica e ensina que o sujeito é isento de qualquer dívida para com os seus pares e, principalmente, de qualquer responsabilização com a diferença, que o sujeito é livre de obrigações que o prendam a uma comunidade.

Nas próximas colunas vou trazer dados de uma pesquisa e analisar como os dois maiores jornais impressos brasileiros em número de circulação nacional, Folha de S. Pauloe O Globo, trataram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em suas páginas nos 20 anos dessa comunidade. Esses dois importantes media levaram os brasileiros para a experiência de uma lusocommunitas ou de uma lusoimmunitas?

Referências

Fürsich, Elfriede (2016). O Problema em Representar o Outro: mídia e diversidade cultural. Parágrafo: Revista Científica de Comunicação Socialda FIAM-FAAM, v. 4, n. 1, p. 50-61.

Giddens, Anthony (2002). Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Motta, Luiz G. (2002). Para uma antropologia da notícia. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 25, n. 2, p. 11-41, jul/dez 2002.

Natali, João Batista. (2004). Jornalismo internacional. São Paulo: Contexto, 2004.

Ortiz, Renato. (2003). Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense.

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