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O tempo, a (in)justiça, o outro: aquém desses conceitos, a necessidade de (sobre)viver…

O tempo, a (in)justiça, o outro: aquém desses conceitos, a necessidade de (sobre)viver…

O início de julho de 2020 marcou o período em que o Brasil ultrapassou largamente o número de sessenta mil pessoas mortas em decorrência da COVID-19. Não obstante esta fatalidade atroz, as sugestões de isolamento social continuaram a ser ignoradas ou desdenhadas pelo nefasto presidente da República e seus ainda mais nefastos seguidores. A curva de contágio só tende a aumentar, infelizmente, apesar dos esforços abnegados de várias pessoas comprometidas com o bem-estar pessoal e alheio. Vislumbra-se, assim, uma nação dividida ao meio, maculada pelo ódio político e condenada a amargar velórios cada vez mais freqüentes.

Nesse contexto demarcado pelas más notícias e pelos embates ideológicos que assumem-se fortemente beligerantes, é difícil não ceder às moléstias psicológicas, ainda que, fisicamente, não estejamos contaminados pelo CoronaVírus ou outras doenças. A depressão surge como aflição concomitante aos casos progressivos desta pandemia que assola inclementemente todo o globo terrestre. E, enquanto pessoas morrem, há quem insista em defender a urgência por “salvar a economia”. O Capitalismo – perpetuamente em crise, para finalidade de auto-sutentação discursiva – segue demonstrando-se como uma infecção sumamente letal.

Numa das várias cenas pujantes de “Hienas” (1992, de Djibril Diop Mambéty), a personagem Linguère Ramatou (Ami Diakhate), após trinta anos longe de sua cidade-natal, exclama: “a vida fez de mim uma prostituta; agora, é a minha vez de transformar o mundo inteiro num bordel”. Sobremaneira enriquecida, em termos aquisitivos, ela guarda em seu âmago uma tristeza profunda: fôra expulsa do condado de Colobane ao engravidar ilegitimamente de um homem que a rejeita. Julgaram-na culpada de sua própria destruição moral. Portanto, ela sente-se na obrigação de devolver aos habitantes da cidadela toda a humilhação que sofrera. A análise deste contundente filme senegalês ajuda a traçar um paralelo importante em relação ao que foi anteriormente descrito…

Último longa-metragem do pioneiro cineasta africano Djibril Diop Mambéty (1945-1998) – que realizaria dois ótimos médias-metragens após este filme – “Hienas” surpreende pelo modo genialmente local com que adapta a peça “A Visita da Velha Senhora”, do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), que é homenageado nos créditos finais do filme. Na trama original, uma senhora influente volta à cidade alemã de Güllen, a fim de vingar-se de uma extrema injustiça que a vitimou na juventude; na adaptação senegalesa, o argumento geral é mantido, mas o viés autoral permite que reflitamos adicionalmente sobre as mazelas advindas do colonialismo.

Logo na abertura, a câmera mambetiana enquadra uma manada de elefantes, que circunda a cidade, ao som da maravilhosa trilha musical de Wasis Diop, irmão do diretor e pai da também cineasta Mati Diop. De repente, vemos um grupo numeroso de trabalhadores fatigados e pobres adentrar o armazém de Draman Drameh (Mansour Diouf), onde convencerão o seu proprietário a servir-lhes bebidas fiado, sob o olhar discordante da esposa ranzinza e avarenta do mesmo. Durante a conversa, sabe-se que Linguère Ramatou voltará à cidade. E todos cogitam os benefícios que podem obter deste retorno…

Após ter os móveis confiscados por credores, o prefeito da cidade reúne-se com seus eleitores, a fim de elaborar uma estratégia discreta de mendicância em relação à poderosa senhora. É quando recordam-se do envolvimento afetivo que Draman e Ramatou travaram na juventude. Sob a promessa de converter-se no sucessor do prefeito, Draman – que define-se como “um mercador falido numa cidade falida” – empolga-se e recebe a sua ex-namorada de maneira festiva, após um breve contratempo na estação de trem. É quando o título do filme é explicado: Linguère Ramatou oferece a fortuna de cem mil milhões de Francos Africanos a quem assassinar Draman Drameh. “O reino das hienas é, então, instalado”, comemora a rica e vingativa dama.

Se, no início, os habitantes de Colobane reclamam que “não são como os norte-americanos, que matam qualquer um por dinheiro”, pouco a pouco eles cedem aos caprichos materiais ofertados por Ramatou, que distribui geladeiras, aparelhos de ar-condicionado e televisões modernas aos moradores. Estes começam a acumular dívidas aviltantes no armazém de Draman, visto que não pretendem pagá-las. É quando ele tenta angariar o auxílio das autoridades influentes da cidade. Na TV da prefeitura, assiste à imagem dramática de uma magérrima mãe etíope tentando amamentar o seu filho famélico. A crítica do roteiro direciona-se também a nós, confortáveis espectadores: será que reagimos adequadamente àquilo que incomoda-nos ao ser videografado? Será que também não estamos a escamotear as nossas culpas acumuladas, no afã por buscarmos perdões que são mais oportunistas que efetivamente sinceros? O desfecho do filme será inclemente, neste sentido.

Conhecido pela maneira bastante iconoclasta com que aborda as contradições coloniais de seu país, o diretor senegalês realiza aqui o seu filme mais tramaticamente linear, em que a narrativa assume o cariz de “balada”. Através da estrutura da fábula contemporânea de costumes, Djibril Diop Mambéty consolida-se como um dos mais inteligentes e inconformistas cineastas africanos, tendo erigido uma curta mas contundente filmografia. Enquanto os mortos acumulam-se no Brasil, por causa da indiferença e desrespeito de outrem, convém imaginarmos, na prática, se realmente estamos a fazer tudo o que é possível para enfrentar uma situação social e midiaticamente chancelada de ignorância em relação ao outro, que é também nosso próximo. “Hienas” é, portanto, não apenas um excelente filme humanista, mas também um propulsor de civismo reativo. Façamos a nossa parte, portanto: vivamos!

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