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O que é um “professor doutrinador” para o bolsonarismo? Guerra cultural e pânico moral como estratégia política

O que é um “professor doutrinador” para o bolsonarismo? Guerra cultural e pânico moral como estratégia política

Em um evento pró-armas realizado no Distrito Federal, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, vulgo “Bananinha”, compara professores que ele próprio considera “doutrinadores” a traficantes.  

“Não tem diferença de um professor doutrinador para um traficante que tenta sequestrar e levar os nossos filhos para o mundo do crime. Talvez até o professor doutrinador seja ainda pior”, disse o deputado [1].

A figura retórica do “professor doutrinador” a desvirtuar seus alunos, corromper “nossos filhos”, aplicando algum tipo de lavagem cerebral não é rara na pauta bolsonarista e do campo político reacionário em geral. Ela foi acionada, com frequência, no projeto do Movimento Escola sem Partido [2], que visava reduzir sensivelmente a liberdade de cátedra e perseguir professores. Ainda hoje há projetos similares e sendo incentivados por meio desse discurso.

Muito mais falas do que ações

Mas antes de entrarmos naquilo que o campo reacionário, do qual Eduardo Bolsonaro faz parte, julga ser um “doutrinador”, é preciso ressaltar que frases de impacto e falas agressivas sempre fizeram parte do repertório político da família Bolsonaro. Tanto o pai Jair quanto os filhos nunca foram exatamente gestores/administradores públicos. Ou seja, nunca se importaram com políticas públicas de fato.

Cabe exemplificar que em três décadas como deputado, Bolsonaro teve apenas dois de seus projetos aprovados e que viraram lei [3]. Um deles liberando a fosfoetanolamina para o combate ao câncer. Chamada de “pílula do câncer” à época, mais tarde o STF julgaria a lei sem efeito por falta de testes e falta de comprovação de eficácia da substância [4]. Era uma prévia do charlatanismo que Bolsonaro viria a popularizar durante a pandemia, encorajando o uso de medicações ineficazes contra a covid, como a cloroquina e a ivermectina.

A projeção política da família, principalmente do pai, se deve quase que exclusivamente à contundência das falas. Algo que alguns poderiam chamar de “lacração” ou coisa pior. Declarações que se valem do ódio, da violência política, e que frequentemente fomentam um clima de conflito. Esse clima de conflito é necessário para manter os adeptos do bolsonarismo constantemente engajados, já que projetos e políticas públicas nunca foram o forte.

Guerra cultural e pânico moral:

Essa lacração faz uso e abuso de artifícios retóricos manjados como a guerra cultural e o pânico moral. Quanto ao primeiro, Cristina Teixeira de Melo e Paulo Vaz (2021) destacam que o conceito de guerra cultural surgiu com o livro Culture Wars: The Strugle To Define America, de James Hunter, publicado em 1991, e que seu sentido imediato seria a existência de conflitos morais. Hunter, segundo Melo e Vaz, cita exemplos que estariam dentro da gama desses conflitos morais, sendo possível perceber que, assim que o conceito de guerras culturais é proposto ou, pelo menos, adensado, logo de cara estão alguns embates da área educacional, o que é o caso em questão, no qual Eduardo Bolsonaro compara professores a traficantes.

Hunter destaca as disputas em torno ao aborto, à posição da mulher na família e na sociedade, à sexualidade, aos direitos do que hoje chamamos população LGBTQI+, ao financiamento público de projetos culturais e exposições artísticas, à separação entre Igreja e Estado, ao multiculturalismo, às cotas para minorias nas universidades, ao cânone dos autores ocidentais no ensino universitário, ao politicamente correto e ao currículo das escolas primárias (MELO e VAZ, 2021, p. 6).

Apesar da multiplicidade de temas, há aspectos em comum que viabilizam uma conceituação sobre o que seriam as guerras culturais. Melo e Vaz citam dois. O primeiro é referente ao modo como o processo de disputa social ocorre: inicialmente, um determinado grupo obtém avanços, por exemplo, no campo dos direitos civis, e, com esses avanços ocorrem mudanças de valores morais. Entretanto, de forma quase que simultânea, há uma reação conservadora organizada. A segunda característica seria, em linhas gerais, um processo amplo de secularização, visto que a noção de guerras culturais fora cunhada dentro do contexto da história política e cultural estadunidense.

Dados o poder de mobilização política e a força da religião na constituição da moralidade nos Estados Unidos, Hunter caracteriza a mudança como um processo de secularização. Por essa razão, ele supõe que o conflito em torno do direito ao aborto seria o protótipo das guerras culturais (MELO e VAZ, 2021, p. 7).

Já o pânico moral ou cultura do medo é quando, por exemplo, apela-se para o medo, atentando para supostos “riscos que rondam as nossas crianças”, “os nossos filhos”, exatamente como fez o deputado. Antônio de Oliveira Bitencourt (2013) destaca que o conceito de pânico moral abarca circunstâncias em que, influenciados por notícias alarmantes diárias, somos postos em uma situação em que não estamos devidamente inclinados com o que realmente deveríamos nos preocupar, como, por exemplo, a pobreza e a fome, que ele cita como problemas sociais graves. “Os pânicos morais estão associados a alguma espécie de perigo iminente e emanam do social” (BITENCOURT, 2013, p. 40).

O conceito não é um termo de alçada popular e comumente é utilizado por políticos, sociólogos, jornalistas, entre outros profissionais, para explicar situações sociais nas quais existe uma percepção, por alguém, que uma determinada situação representa um risco potencial (real ou imaginário) para uma população (Ibid).

Disputa pelo espólio político de Jair Bolsonaro:

Também é preciso compreender o momento em que Eduardo Bolsonaro dispara sua frase comparando profissionais da educação a traficantes. Jair Bolsonaro foi derrotado nas urnas, mas muitos de seus apoiadores se elegeram. O Bolsonarismo segue vivo, ainda que não demonstre a mesma força que tinha há cinco anos. Por isso, há certa indecisão nos rumos do movimento. Como ainda não se sabe qual nome da extrema direita irá herdar o espólio político de Jair Bolsonaro, muitos nomes começam a se insinuar. Eduardo Bolsonaro sabe que é preciso manter-se em evidência para não perder o posto de herdeiro político. E como a estratégia política dos Bolsonaro sempre foi a contundência das falas, o deputado federal mantém o jogo que, em linhas gerais, sempre funcionou para sua família.

Mas a disputa não é fácil. Sempre há um Nikolas Ferreira disposto a lacrar mais alto. O deputado mineiro chegou a vestir no plenário da Câmara uma peruca loura e se rebatizar como Nicole [4], tudo para disseminar o mesmo discurso transfóbico que alavancou sua carreira política e tentar aparecer. Conseguiu. A briga pelo espólio político do ex-presidente Bolsonaro fica ainda mais difícil porque, segundo analistas, a direita agora busca um nome mais moderado (comparativamente aos Bolsonaro) para quem sabe tentar uma eleição presidencial em 2026. Nomes como Tarcísio de Freitas e Romeu Zema, governadores de São Paulo e Minas Gerais, respectivamente, são alguns dos cotados. Se for esse o caminho, a agressividade retórica de Eduardo Bolsonaro pode não ajudá-lo. O tempo dirá e ainda há muita água para rolar.

O que seria um “professor doutrinador” pela ótica reacionária? Uma análise a partir do ensino de história

Os defensores de Eduardo Bolsonaro alegam que ele não comparou professores a traficantes (de armas ou drogas, vai saber), mas somente aqueles professores específicos, que agem como doutrinadores. O problema é a abrangência do termo “doutrinador” para o campo extremista e reacionário do qual o deputado faz parte. O que seria exatamente um “professor doutrinador”?

Basicamente é todo professor que ensina um conteúdo em sentido contrário às confabulações políticas infundadas disseminadas de forma manipulatória pelo bolsonarismo. E aqui cabe-nos explicar do ponto de vista do ensino de história, área que nos é mais afeita e uma das mais atacadas por esse tipo de discurso que se vale da guerra cultural e do pânico moral.

Doutrinador pode ser, por exemplo, o professor que explica os problemas sociais, políticos e econômicos da ditadura militar no Brasil, uma vez que a ditadura é glorificada pelos bolsonaristas e demais reacionários. Doutrinador pode ser aquele que aponta para as sequelas até hoje sentidas na sociedade brasileira por conta do etnocídio sofrido pelos povos indígenas ou pela escravidão imposta aos negros no Brasil. Também pode ser entendido como doutrinador aquele profissional que analisa, em perspectiva histórica, o problema do latifúndio, da enorme concentração de terras no país, algo que remete aos tempos das capitanias hereditárias, e que explica a importância histórica da luta por reforma agrária. Tudo isso, pela ótica bolsonarista, vira “doutrinação”. Não é pouco!      

No artigo do Café História escrito por Bruno Carvalho e Nilton Mullet (2021), ao abordarem o assunto no campo do ensino de história, os autores explicam que, por trás da acusação de doutrinação, o que existe é um ataque à pluralidade de um ensino que dá voz e vez a grupos até então subjugados:

O tom acusatório com que apontam professores de História de doutrinadores apenas tem o objetivo de continuar, contraditoriamente, a mostrar um mundo baseado em apenas uma doutrina, uma mesma visão de mundo, àquela legada, através do genocídio e da escravização, pelo colonizador (CARVALHO e MULLET, 2021, on-line).

Os autores contextualizam, esclarecendo as mudanças pelas quais o ensino de história passou nas últimas décadas, absorvendo novas vozes, novos atores sociais. Com frequência ouvimos a frase que diz que “a história é escrita pelos vencedores”. Pois as últimas mudanças na pesquisa e ensino de história são direcionadas justamente no sentido contrário a essa frase, desconstruindo a noção de que somente vencedores devem explicar como tudo aconteceu e como chegamos onde chegamos. Restringir a história à versão dos vitoriosos e grupos dominantes (de ontem e hoje) não é bom para a historiografia. Não é bom para a ciência!

Por muito tempo, o Ensino de História privilegiou doutrinas e visões de mundo marcadamente europeias, silenciando sobre doutrinas de outros povos e culturas. Vale dizer, por exemplo, que durante muito tempo as aulas de história não discutiam a cultura e as doutrinas religiosas de matriz africana, dedicando-se, quase exclusivamente, às religiões e doutrinas grega, romana e cristã.

Isso porque a aula de História era afetada por uma visão de mundo específica: a do agente colonizador europeu. Durante séculos, o Brasil foi colonizado por uma nação europeia, e isso deixou marcas profundas em nossa sociedade, a começar pela forma como entendemos a história. Acostumamo-nos a ver os povos africanos e indígenas como atrasados, passivos e sem protagonismo, enquanto que os povos europeus seriam aqueles que fizeram a humanidade realmente avançar, produzindo uma cultura “universal”.

Há algumas décadas, essa forma de escrever a história mudou. Historiadores em todo o mundo passaram a estudar, pesquisar e escrever muito mais sobre outros povos e culturas, e recentemente, essa “nova história”, muito mais plural e representativa, chegou aos livros didáticos. Acontece que, como toda mudança, essa gerou desconforto. Algumas pessoas entenderam que falar, por exemplo, de religiões de matriz africana, era o mesmo que diminuir a importância das religiões cristãs, ou ainda, que explorar a história dos povos da Ásia e os seus feitos ao longo do tempo, era o mesmo que ignorar a cultura europeia. O professor, ao fazer isso, estaria “doutrinando” suas turmas (…).

Uma aula de História é um espaço público onde se aprende sim doutrinas e teorias diversas, mas é, sobretudo, o lugar onde se aprende a conviver, a difícil arte da convivência, do respeito e do diálogo. Um jovem que não vai à escola e não frequenta uma aula de História onde pode debater e discutir com seus colegas e professores, não aprende a entender a pluralidade do mundo. Uma criança ou um jovem não são “tábulas rasas”, incapazes de dialogar, de contestar ou de resistir (Ibid).

Referências:

BITENCOURT, Antonio Belamar Oliveira de. Risco e pânico moral: um estudo sociológico do “Medo do Crime” na revista Superinteressante 2008-2012. Santa Maria: UFSM, 2013.

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de; MULLET, Nilton. Professores e professoras de história são mesmo doutrinadores? (Artigo) In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/professores-e-professoras-de-historia-sao-mesmo-doutrinadores/.  Publicado em: 27 jul. 2021. ISSN: 2674-5917.

MELO, Cristina Teixeira de; VAZ, Paulo. Guerras Culturais: conceito e trajetória. In: Revista Eco-Pós, v. 24, n. 2, 2021.

[1] Eduardo Bolsonaro compara professores a traficantes; PF deve analisar fala

[2] Escola sem Partido | Fernando Penna

[3] Em 27 anos como deputado, Bolsonaro tem dois projetos aprovados

https://www.redebrasilatual.com.br/politica/em-27-anos-como-deputado-bolsonaro-tem-dois-projetos-aprovados/

[4] STF JULGA INCONSTITUCIONAL LEI DE BOLSONARO QUE AUTORIZA PÍLULA DO CÂNCER

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/stf-julga-inconstitucional-lei-de-bolsonaro-que-autoriza-pilula-do-cancer/

[5] Nikolas Ferreira veste peruca na Câmara e ironiza mulheres trans

https://www.youtube.com/watch?v=sB2YUgzfHvM

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