O segredo da felicidade é a liberdade e o segredo da liberdade é a coragem.
Péricles citado por Tucídides
Há muito vem sendo reconhecido que a passagem para o Sec. XXI é caracterizada pela emergência de uma nova matéria-prima. Trata-se, hoje, quiçá, de globalmente reconhecer esta realidade como o Conhecimento transformado em Informação. Particularmente, pode dizer-se, estando já muito especificamente a pensar-se numa dimensão sui generis – que assinala a emergência do conhecimento atual na sua forma digitalizada, que se vem assistindo, hoje também, sobremodo, a toda uma vontade na sua apropriação. Um efetivo controle que, no seu limite – e difuso nos seus contornos -, nos transporta para relações de poder.
Dominar a informação é atualmente ter poder e dominar. É hoje, portanto, um dado quase adquirido, que a denominada Sociedade da Informação vem tomando a tecnologia, ajustando-a às necessidades de domínio, numa lógica de imposição central perante as necessidades individuais de cada um de nós. Não obstante, cada vez mais esta vontade de apropriação se vai transformando num mercado global, universal, onde a mercantilização se dissemina, de par com a digitalização das nossas vidas pessoais, profissionais e organizacionais.
Naquilo, aliás, que alguém com felicidade e acutilância semântica designou de “individualismo de redes”, vamos caminhando para a “economia de redes”, o “sistema financeiro de redes”, o “jornalismo de redes” e, naturalmente, para um “sistema político de redes”. O fascínio pela Internet, e as suas múltiplas oportunidades, veio converter a tecnologia num poder, não só de transformação pessoal, como num poder económico, social e político.
Mas, a verdade é que, neste momento, únicas certezas ditam que o contexto e a evolução, que ainda assistiremos desta revolução digital em curso, estão, pois, longe de definidos. Pelo que, algumas questões (mais que certezas!) podem ser evidenciadas. Que modelos de relações sociais, narrativas de vida e contexto de socialização e sociabilidade sairão destas mudanças e desta inundação do meio social, por força da mediatização digital? Continuaremos os mesmos, ou arriscamos pior, se nos desligamos, cada vez mais, dos grupos sociais tradicionais, para mergulharmos, por vezes secreta e anonimamente,em redes sociais que proliferam na Internet sob os mais variados interesses?
Não pretendemos com o presente dar respostas. Longe disso. Existem centenas senão milhares de notícias, artigos, opiniões, conselhos, tutorias, etc … tudo online para todos e com os temas possíveis e imagináveis. E tudo apenas à distância de um click. Resta, todavia, apurar da sua fidedignidade.
Com as tecnologias digitais todos podem procurar informações atualizadas, navegando na internet e desafiando mesmo os experts. Ora, este é um exemplo claro da desintermediação. Mas, faltam os mecanismos que assegurem a fiabilidade do que se encontra ou que corrijam erros e falsidades tanto de informação como de comunicação. Como assinalam com feliz acutilância Martins & Garcia (2013) o Homem na era digital molda os seus pensamentos e ideias conforme aquilo que lê e o facto de aquilo que lê poder não estar correto leva a que o homo connexus – indivíduo da era digital que vive online e se liga aos outros instantaneamente através de dispositivos digitais – se transforme num homo credulus – individuo que se deixa intoxicar por teorias negacionistas ou conspirativas de toda a espécie.
Aqui chegados parece-nos provocatório pretender estabelecer um cruzamento desta realidade com a arte e ver, nesta, uma forma de contrariar os malefícios que podem atingir o homo connexus. Talvez não(?!), se pensarmos na arte como uma das formas mais generosas de afirmação da individualidade e da liberdade do Homem.
Desde quase o dealbar do século XX, a reprodução técnica acaba impondo-se de forma constante e evidente alcançando um nível que permite considerar como seu foco principal, não só, e apenas, a totalidade das obras de arte provenientes de épocas anteriores (submetendo os seus efeitos às modificações mais intensas) como, também, em simultâneo, a conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos artísticos (v.g. caso da fotografia ou do cinema).
Na realidade, esta (re)produção aparece então como um processo sintomático, onde o seu significado ultrapassa o domínio da arte. Pode dizer-se, até, que a técnica de produção/reprodução acaba libertando o objeto reproduzido do domínio da tradição e do ritual. Dedica-se a multiplicar o reproduzido e coloca-se no lugar da ocorrência única a própria ocorrência em massa de reproduções. Em síntese, este complexo simbiótico de ambos os processos, resulta na provocação de um profundo abalo do que é reproduzido.
Fundamental, parece continuar a ser, portanto, o ter a consideração de que tais contextos relevam para a reflexão sobre a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (como tão pertinentemente aludiu, de forma pioneira, Walter Benjamin em 1936). Justamente, porque eles preparam o reconhecimento do que é, de facto, decisivo. Isto é, a reprodutibilidade técnica da obra de arte emancipa-a, pela primeira vez, da sua dependência do ritual. Até porque, a obra de arte reproduzida torna-se cada vez mais, ela mesma: o ser a reprodução de uma obra de arte que assenta na reprodutibilidade. Muitos apontam aqui aos efeitos concomitantes da democracia e à circunstância de a arte se “democratizar”.
Após a 2ª Guerra Mundial assiste-se a um movimento universal nos discursos, claramente contrários aos totalitarismos e que desafiam os princípios ideológicos, que apontavam para “leituras” filosóficas de cariz atemporal e universalizante. A tudo isto, os movimentos artísticos não ficaram imunes. Pode, até, afirmar-se que estiveram, desde o primeiro momento, na “linha da frente”, enquanto defensores de uma contemporaneidade assente numa visão antitotalitária da sociedade, mesmo que democraticamente fragmentada. Movimentos, que colocaram o foco no desafio permanente à nossa inteligência, despertando as consciências para o que é heterogéneo, marginal. Marginalizando até o quotidiano.
Nesta que acaba sendo a arte dos “novos” tempos, despontam novas linguagens, técnicas e experimentações. Assiste-se à própria fragmentação dos objetos e à destruição da sua estrutura. Introduzem-se letras, palavras, números, pedaços de madeira, vidro, metal e até objetos inteiros nas pinturas. Esta inovação acaba por ser explicada pela intenção dos artistas, em termos de criação, em utilizar uma linguagem nova que cria efeitos plásticos e onde se ultrapassam os limites das sensações visuais (que a pintura v. g. apenas sugere), despertando na recetividade do observador inúmeras sensações táteis.
Cada vez é mais difícil falar em movimentos na arte atualmente. Muito menos em uniformidade. A fragmentação, a que vamos assistindo na arte, assenta no facto de cada artista criar o seu próprio universo. De resto, a bem de ver, a fragmentação (enquanto praxis que nos persegue) acaba sendo uma realidade do nosso tempo. As criações artísticas (elas mesmas!) também não nos surgem como narrativas. Os elementos visuais e os temas aparecem muitas vezes em ritmos descontínuos, fragmentados (mas nem por isso deixam de apresentar uma totalidade), o que exige uma leitura e uma sensibilidade mais apurada para sua compreensão.
Estaremos, pois, perante novas “leituras” da arte onde o artista é prestigiado pela sua atitude. Onde se coloca no centro a liberdade criativa e não o objeto artístico final. Processo que ocorre de forma profunda. E que, no final, além de nos “tocarmos” na experimentação da produção artística, acabamos por ser envolvidos na reflexão, no romper com paradigmas, na sublime oportunidade central de ser ativo e crítico. Por isto, se acaba vendo na arte contemporânea, nas obras de arte, uma espécie de libertação. Liberdade de criação de modo intenso, sem amarras ou censura. Liberdade, também, na sua perceção e compreensão.
A seu tempo a liberdade de expressão é um direito fundamental para a realização humana. Será aqui, então, na convergência destas duas dimensões que se pode conectar o conhecimento e a arte. O âmbito virtual representa um “novo mundo” para o seu exercício. As ações humanas, mais do que se espelharem na rede, agora também nascem na rede. De certa forma, até, os indivíduos tendem a agir mais em meio virtual.
Mas, será pelo que se evidenciou que a arte pode catalisar um espírito crítico para o conhecimento fugaz, que vai emergindo das “redes”, como se assinalou? Despontar na individualidade algum inconformismo? Não sendo a solução. Pensamos que ajuda. Parece-nos até que podem ser excelsas ferramentas para contrariarem a inevitabilidade sentenciada ao denominado homo credulus, na feliz formulação que Martins & Garcia (2013) aludem.
Como ensina Rancière (2005) a arte é ativista pois reage ao momento. Acaba tendo (ela mesmo!), determinadas características que são resultado do momento singular em que é produzida. É inevitavelmente estética e política. Pois a arte, como a política, interfere no tempo e espaço público e social, seja em conformidade, seja em rutura com o momento. Ora, a atuação num leque tão vasto de espaços e de tão amplo acesso, como nas redes, proporciona uma maior atenção sobre a realidade, o que terá como consequência uma atitude mais ativa e crítica sobre a mesma, seja de quem observa, seja de quem produz e que pode proporcionar a capacidade de intervir livre, crítica e responsavelmente na vida pública, política, social, cultural e económica.
Referências
BENJAMIN, Walter (1936), A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, obtido a 01 de julho 2023 dehttps://web.archive.org/web/20131110051935/http://baixacultura.org/biblioteca/artigos-ensaios-papers/1-1-a-obra-de-arte-na-era-de-sua-reprodutibilidade-tecnica/
MARTINS, Hermínio e GARCIA, José Luís (2013). In José Luís Cardoso, Pedro Magalhães e José Machado Pais (orgs.). Portugal social de A a Z. Temas em aberto. Lisboa: Impresa Publishing/Expresso, pp. 285-293 RANCIÈRE, Jacques (2005). A partilha do sensível: estética e política/Jacques Rancière (tradução de Mônica Costa Netto). EXO experimental org. São Paulo: Ed. 34. obtido a 01 de julho de 2023 de https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2015/05/ranciere-a-partilha-do-sensivel1.pdf