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O efeito borboleta: parte 1

O efeito borboleta: parte 1

No momento em que este texto foi terminado (17 de março às 18h GMT) havia perto de 200 mil pessoas infetadas com o coronavírus, em mais de 160 países. O número de fatalidades ultrapassou os 7.800, e 6.500 pessoas encontravam-se em estado crítico (https://www.worldometers.info/coronavirus/). Vários países encerraram fronteiras, e muitos mais seguirão o exemplo, na tentativa de controlar a pandemia. A economia mundial ressente-se, com os mercados em queda, e expetativas crescentes de despedimentos, falências, e reversão do ciclo de crescimento. O cenário para as semanas que se seguem é aterrador, e ninguém se atreve a fazer previsões relativamente a quando e como é que esta crise terminará.

E tudo isto porque alguém, há quatro meses atrás, numa cidade na China, decidiu comer um morcego. Ou um pangolim. Ou ambos.

O efeito borboleta, popularizado por Edward Lorenz numa apresentação para a American Association for the Advancement of Science em 1972 (http://climate.envsci.rutgers.edu/climdyn2015/LorenzButterfly.pdf), é aduzido do modo seguinte: poderá o bater de asas de uma borboleta no Brasil provocar um tornado no Texas? A versão mais popular desta questão surge com Robert Redford, no filme Havana, quando a sua personagem (um jogador) declara que o bater de asas de uma borboleta na China pode provocar um tufão nas Caraíbas.

A pessoa que comeu o morcego, tal como o cómico esquilo Scrat, em Ice Age, não poderiam adivinhar os efeitos devastadores de uma simples ação. Mas fica claro que num sistema complexo dinâmico, na terminologia de Lorenz (como é o mundo globalizado), pequenas variações nas condições iniciais do sistema podem ter efeitos avassaladores e imprevisíveis nos seus resultados. Ao matemático e meteorologista americano é atribuída a paternalidade da teoria do caos, e o coronavírus parece ser um exemplo perfeito de que a teoria funciona.

Também estas linhas são sobre esse ser invisível, que encostou à parede o todo-poderoso Homem, que percebe agora o pouco controlo que tem sobre os acontecimentos. A Natureza parece dizer “chega de disparate; deixa-me mostrar quem manda realmente aqui!”. As linhas que aqui se redigem têm uma baixa perenidade garantida. Pelo que a parte 2 deste texto virá dentro de aproximadamente um ano, a fim de melhor aferir as ideias ora expostas.

A reflexão é sobre o potencial de aprendizagem que traz a perturbação. Olhar para o lado positivo do evento não é uma falta de respeito para com todos aqueles que perderam a vida, e sobretudo para os grupos mais afetados. Nem sequer é menosprezar outros efeitos negativos por advir, como o desemprego, as falências, e o empobrecimento. Na verdade, a perca de vidas e tragédias conexas não devem ocorrer em vão. Devem tirar-se lições, a fim de progredir em sentidos antes não pensados.

Esta não é a primeira pandemia do mundo. A Gripe Espanhola (há 100 anos), e a Peste Negra (Século XIV) são as mais notáveis. Mas esta é a primeira da era digital e global, em que a facilidade e rapidez de circulação de informação encontra um paralelo apenas na da circulação de pessoas. Eis algumas das aprendizagens a fazer:

  • A primeira é de natureza técnica, que inclui várias dimensões, desde a médica à epidemiológica. Por exemplo, porque razão a infeção evolui de forma diferente nos vários países? Porque é que a Itália, no momento presente, exibe uma situação dramática, enquanto outros parecem estar a controlar o flagelo? Porque se espalha mais depressa entre determinadas populações? Etc. É de esperar uma torrente de investigação para responder a estas questões, cujas respostas vão preparar todos para a próxima pandemia.
  • A segunda é a pandemia do medo. Apesar do vírus se espalhar com rapidez e de forma global, o contágio psicológico é de longe mais rápido. A pandemia do medo tem todos os ingredientes para se tornar mais poderosa do que a pandemia viral. Albert Camus em La Peste levanta um pouco o véu sobre a fragmentação social que resulta de um evento como o que se vive. Na essência, a disrupção causada pelo medo coletivo é tão gravosa que tem a capacidade para mudar radical e rapidamente uma ordem social, uma cultura, ou um sistema global. Este vírus está a ter o condão de mostrar como é enfrentar um cenário cataclísmico, que deve ser uma lição para uma civilização em cavalgada acelerada para uma catástrofe ambiental.
  • A terceira é a mudança comportamental, cultural e política. As pandemias da peste negra e da gripe espanhola trouxeram alterações abruptas nas respetivas sociedades; depois da peste negra, por exemplo, a crença religiosa aumentou exponencialmente; e depois da gripe espanhola, observou-se uma forte evolução dos sistemas de saúde. Talvez com o coronavírus os governantes e as sociedades parem para refletir sobre a importância da sustentabilidade. Em simultâneo, talvez as pessoas compreendam que é possível trabalhar de outra maneira que não implique destruir os recursos naturais. Eis dois exemplos: 1) em poucas semanas o teletrabalho está a substituir o trabalho presencial; e 2) as famílias unem-se, passando mais tempo juntas em poucos meses, do que nos últimos anos.
  • A quarta é a recuperação do planeta. Entre fevereiro e março de 2020 vários países proibiram a circulação de pessoas e suspenderam negócios. A economia está a parar, mas a poluição também abranda. As fotografias que comparam os níveis de poluição sobre a China, antes e depois da quarentena, colocadas a circular em fevereiro pela NASA e pela Agência Espacial Europeia, mostram uma queda a pique na concentração de gases poluentes com feito de estufa. Um padrão semelhante será seguramente visível nas fotos que irão surgir nos próximos meses, em outras regiões do globo. A Natureza floresce, tal como previu o virologista e epidemiologista americano Jonas Salk: “se todos os insetos desaparecessem da Terra, dentro de 50 anos toda a vida na Terra acabaria. Se todos os seres humanos desaparecerem da Terra, dentro de 50 anos todas as formas de vida iriam florescer”. Salk sabia quem é o verdadeiro vírus destruidor.
  • A quinta é o teste aos sistemas nacionais de saúde e à Organização Mundial de Saúde. Seja qual for o resultado final da situação que se vive, os sistemas e profissionais de saúde serão os grandes heróis desta guerra, não apenas pelos que salvam, mas também pela entrega incondicional a uma causa maior. Em uníssono, parecem gritar um famoso juramento: proteger a integridade da vida e dar assistência aos doentes. A saúde é cara, mas tal apenas sucede porque a vida humana não tem preço. A este respeito, novamente Salk (que apresentou em 1954 a vacina para a poliomielite) terá dito: “a quem pertence a minha vacina? Ao povo! Você pode patentear o sol?”.
  • A sexta é outro teste, às democracias europeias. Quando se assiste ao progresso galopante dos infetados pelos países europeus, ao mesmo tempo que o regime chinês aparenta estar a controlar a epidemia, pode julgar-se que as democracias do Velho Continente estão a capitular nesta guerra mundial. Mas, de facto, os mecanismos democráticos encontram-se em pleno funcionamento, não obstante imperfeições, problemas, e atrasos de decisão, explicados por nunca antes na história da Humanidade uma moderna democracia se ter deparado com um problema de tal magnitude. Por exemplo, a declaração de Estado de Emergência impõe restrições severas às liberdades individuais, mas é um estado reversível, ou seja, depois de resolvido o problema, as liberdades individuais são repostas. Tal não existe noutros regimes políticos.
  • A sétima diz respeito ao conceito de Estado. O vírus está a mostrar porque se torna necessário um Estado. No capitalismo liberal de inspiração americana, o Estado assume frequentemente o papel de um empecilho no crescimento económico, devido à sua dimensão, funcionamento burocrático, e demora de decisão administrativa. A presente crise ilustra que apenas os Estados têm as motivações e os meios para salvar pessoas sem olhar à sua idade, credo ou condição social.

A impreparação generalizada para enfrentar o coronavírus é o primeiro sinal de reconhecimento que melhor preparação será necessária para os próximos vírus. Os meses que se seguem vão ser duros. Fica pois a esperança de que após esta privação coletiva, o resultado seja um salto em frente na humanidade da Humanidade.

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12 respostas

  1. Tema atual num comentário bem explorado, como sempre. Confesso alguma mágoa por uma menor atenção a todos aqueles que asseguram a subsistência dos vivos, como os que se encontram a garantir o funcionamento da cadeia alimentar, energética ou de mobilidade que, enquanto não se verificar uma saturação dos serviços de saúde, acabam por ser tão ou mais importantes que estes últimos profissionais. Também aos que vão ficar sem emprego, ou sem meios de subsistência; aos que circulam na economia paralela e não vão receber apoios do Estado; e aos que vão sofrer sobretudo com a pandemia do medo, ao serem excluídos pela xenofobia que irá crescer exponencialmente. Emigrantes, sem-abrigo, franjas sociais, pequenos proprietários dependentes do turismo a atividades derivadas… Eis as verdadeiras vítimas da presente crise. Abraço. Fernando

  2. Fantástica exposição Jorge. É essencial que enquanto sociedade possamos aprender com esta situação, e melhor preparar as inevitáveis pandemias futuras. Esperemos que a economia tenha capacidade para recuperar rapidamente.

    1. A minha reserva é o pensamento que alguém, logo após o fim da Peste Negra e da Gripe Espanhola, possa ter escrito exatamente o mesmo que eu escrevi… E passados vários anos, aqui estamos, a cometer muitos dos mesmos erros…

  3. Obrigado, Jorge. De facto partilho a ideia de que esta pandemia pode ser muito mais uma oportunidade para o mundo do que uma ameaça. Mas estou muito cético. O texto daqui a um ano vai ser muito importante para nós ajudar a compreender melhor o que vai e continuará a acontecer. Um forte abraço.

    1. Não deixa de ser interessante ver, enquanto o drama humano se desenrola, a força da Natureza e a sua recuperação, ainda por cima em pleno início de Primavera. Talvez olhando novamente para os céus azuis, para os mares mais limpos, e para o voo dos pássaros, das borboletas e de outros insetos, que vai certamente aumentar nas próximas semanas, nós nos recordemos de como é viver em harmonia com este belo mundo. E pode ser que, depois, decidamos concertar uma ação mundial para parar tudo uns 2 meses por ano, todos os anos, para dar oportunidade à Natureza para recuperar. Thoreau foi o primeiro a escrever sobre ecologia há 160 anos. A ver se finalmente aprendemos.

  4. “Encalhei” numa ligação via whats app, que me trouxe a esta sua soberba,discernida reflexão!Tenho um enorme e profundo desejo: que ela chegue aos “decisores” deste nosso mundo.
    Muito obrigado.

    1. Muito obrigado, Luis. Esperança, solidariedade, e força, é o que precisamos. Para passar pela crise. Mas também para que os nossos governantes aprendam.

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