No texto passado, adentramos nos poucos registros em 20 anos da CPLP nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo para aprofundar a investigação sobre o porquê da opção brasileira na invisibilização da comunidade lusófona. Vimos que no Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) havia uma tentativa de descolar o Brasil dessa comunidade, que é majoritariamente negra, pobre e crioula, em razão de que seis dos nove países da CPLP são africanos. Tem-se aí um claro componente racista. O contato brasileiro com a ideia de comunidade lusófona, quando raramente existiu, foi invisível, bem à distância e atravessado por desejos neocoloniais.
Agora, analisamos algumas notícias nos dois jornais quando o presidente do Brasil foi Lula da Silva. Depois de dois mandatos de FHC, o presidente Lula tomou posse em janeiro de 2003 e, tanto na Folha quanto em O Globo, há um salto no número de registros em relação à CPLP, comparando-se ao período do governo anterior. Lula, presencialmente, tentava estabelecer uma política externa no eixo Sul-Sul, mas nos dois jornais a maior parte das narrativas sobre a CPLP e as nações africanas lusófonas, pelo menos no primeiro momento, manteve-se, isto é, de um Brasil que buscava liderança internacional e de uma tutela neocolonial sobre os países pobres, a mesma tônica que vinha do Governo FHC.
Em novembro de 2003, os dois jornais acompanharam a viagem do presidente a África. O Globo, em 04 de novembro, deu destaque ao fato de Lula anunciar U$S 1 bilhão do BNDES (banco público no Brasil) para Angola. O jornal enfatizou que Lula chegou acompanhado por “uma comitiva de 60 grandes empresários brasileiros”, motivo que fez aquele periódico parabenizar o presidente por agir como um “agente do desenvolvimento”. O jornal diz que Lula levou a iniciativa privada brasileira a participar “do espetáculo de crescimento no país africano” (O Globo, 04/11/2003, p. 9), dando continuidade às “boas ações” do Governo FHC. Essa notícia nos faz lembrar Anderson (1993), na medida em que ele revelou que as expansões imperialistas europeias do século XV tinham no soberano do Estado-nação a figura de um agente de defesa e promoção dos consórcios privados transnacionais.
Além do ângulo econômico (investimentos, empresários, etc.), O Globo revela-se como um ator político em pleno exercício ao julgar, autorizar e festejar a iniciativa do presidente Lula em liberar recursos públicos para o setor privado sob a alegação de fomento ao “desenvolvimento” do país africano. Lembremos que esses jornais, tidos como meios de referência do jornalismo nacional, não são meros meios para informação jornalística, mas agentes políticos inseridos no jogo econômico e que buscam influenciar nas decisões em benefício do grande capital (Arbex Júnior, 2002; Miguel, 2002; Zanin, 2014).
Apesar de destacar a economia, O Globo (04/11/2003, p. 9) acaba trazendo dois pequenos quadros (boxes) em que deixa escapar o silenciamento de questões identitárias nítidas. No primeiro, o presidente Lula é chamado por deputados angolanos de “porta-voz dos desfavorecidos do planeta” em razão de seus discursos em favor dos “humildes”. O jornal não reproduz as falas de Lula, mas diz que o presidente brasileiro anunciou em Angola que as escolas no Brasil teriam uma disciplina sobre a África e a cultura afro-brasileira. O jornal não avança nessas informações, não quis avançar, isso não interessava.
No segundo quadro na reportagem, o jornal (04/11/2003, p. 9) argumenta que os investimentos em Angola são bons porque ajudam no desenvolvimento daquele país. No texto há uma clara indicação de que ao gerar empregos lá, os angolanos ficam em seu país, não precisam se deslocar para o Brasil. O jornal fixa o Outro onde está, longe de nós. Para isso, O Globo usa números: “mais de 6 mil angolanos” legais vivendo na “miséria” no Brasil, mas o “maior problema” são os clandestinos, cerca de 10 mil. Eles “acabam virando presas fáceis para o tráfico” (O Globo, 04/11/2003, p. 9). Assim, os recursos públicos para iniciativa privada em Angola evitam que os pobres deixem seu país, além de possibilitar que os angolanos ilegais, o Outro, estrangeiro, miserável, perigoso, possam ser expulsos do Brasil. Nesse ponto, apagaram-se as referências ao parentesco com os brasileiros. Os angolanos não mais “primos pobres” (como no texto anterior). Perceba que há uma profunda ocultação dos fatores comunitários, históricos, identitários.
Na cobertura dos jornais sobre a ida de Lula a África existem dois aspectos sutis: o primeiro é que o presidente é reconhecido como a voz de liderança dos países pobres, incluindo o Brasil nessa faixa, entre os pobres, de modo inverso ao que ocorreu no Governo FHC, que buscou ser liderança, mas sem inserir-se neles. Com o Governo Lula, esse vínculo aos países lusófonos será alvo de forte rejeição pelos jornais. O segundo aspecto tem relação com o enorme minuto de silêncio em torno da informação de que as escolas brasileiras vão ter uma disciplina sobre África. Há uma longa justificativa histórica e identitária no discurso de Lula em Angola sobre isso (Júnior, 2013), mas esse discurso está ausente no jornal. Não estamos a tratar de uma omissão ou um lapso, mas de uma exclusão pensada, planejada, mas que deixou rastro, uma presença ausente submetida aos valores do capital, conformando o visível e o invisível.
O jornal Folha de S.Paulo também cobriu a primeira visita do presidente Lula aos países africanos lusófonos em novembro de 2003. Dias antes da viagem, na edição de 30 de outubro, esse jornaldestacou: “Lula pedirá votos na África para conselho”. Nesse registro, informa-se que Lula faria uma ofensiva “na busca de liderança internacional, principalmente entre países pobres” (Folha, 30/10/2003, Brasil, p. 6). O jornal diz que o Brasil espera contar com o voto dos africanos para o Conselho de Segurança da ONU, pauta que vinha do Governo FHC. Curiosamente, na notícia não existem falas nem do presidente e nem de ministros informando esse interesse. A pauta sobre o Conselho da ONU era dos dois jornais, agindo como atores políticos que buscam influenciar o governo. Entretanto, em razão do regime de visibilização dessa questão, a pauta acabou sendo assumida como oficial no decorrer do Governo Lula.
Dias depois, em 03 de novembro de 2003, a Folha acompanhou a chegada de Lula em São Tomé e Príncipe. A perspectiva econômica também moveu essa cobertura. Quase toda notícia sobre o evento da CPLP naquele país tratou da cobrança de Lula à Petrobras para que ela fosse mais “ambiciosa” em explorar petróleo na África. O presidente brasileiro teria sido informado por empresários que bacias petrolíferas estavam abertas à exploração, mas a empresa brasileira ainda não tinha se apresentado lá. A Folha, apesar da foto do registro mostrar o presidente Lula e sua mulher, Mariza, cumprimentando crianças, reforça a lógica econômica de uma miragem neocolonial brasileira permanente sobre aquele continente.
Todavia, nessa mesma notícia emergiu um rastro que denuncia que o presidente tratou de outras questões, além da Petrobras, e da pauta econômica. A repórter Eliane Cantanhêde, que acompanhava a viagem pela Folha, relatou que “Lula falou o tempo todo em tom emocional, lembrando ‘os escravos e a dívida histórica do Brasil com a África’” (Folha, 03/11/2003, p. 4). Ou seja, os relatos da cobrança à Petrobras, cujo intuito é denotar uma postura incisiva em relação à África, apagou outros lances visíveis e não vistos na viagem. Na verdade, os interesses neocoloniais, expressos na maior exploração do continente africano, impõem a invisibilização das relações históricas e identitárias entre nós e África. Na prática, a narrativa do jornal tenta não dizer de nossos vínculos porque isso implicaria em “dívida histórica do Brasil com a África” e, ao não iluminar essa questão, a Folha assume-se como immunitas (Esposito, 2005), não aceitando que temos dívidas, obrigações, de deveres de retribuição.
Podemos ver nessa notícia uma sutil trama de invisibilização das marcas históricas e identitárias no Brasil quando o jornal inicia o texto com: “Lula falou o tempo todo em tom emocional”. O racional, o que deve ser levado em conta, é a cobrança do presidente para a Petrobras explorar mais a África. O que é sério é o discurso econômico, fazer “bons negócios”, a atender os interesses do capital. As demais falas do presidente, quando ele diz sobre escravidão, sobre os vínculos históricos e identitários, apresenta as dívidas históricas que temos para com África, tudo isso é tratado como discurso emocional, do passado, sem amparo racional, sem seriedade.
Na edição do dia seguinte, 4 de novembro, a Folha também noticiou a visita de Lula à Angola. O registro foi marcado pelo anúncio de “imposto zero” aos produtos angolanos no Brasil, ação que o jornal diz ser “prejuízo” ao mercado brasileiro. Todavia, também nessa reportagem, a Folha coloca em invisibilização um dado central: o “imposto zero” estava alinhado à política externa do governo brasileiro que buscaria refletir sobre a “dívida histórica” do Brasil para com a África. O jornal apenas informa que Lula foi chamado de “porta-voz dos pobres”. A Folha, no pequeno texto sobre a viagem, insiste em utilizar “países pobres” (seis vezes) para “qualificar” homogeneamente todas as nações africanas lusófonas.
A partir de 2004, outras temáticas que existiam timidamente nos dois jornais passaram a ter enfoque central e visível sobre a CPLP e o presidente Lula nos dois jornais: as ditaduras e a corrupção nos países da África lusófona. Além de reforçar a associação miséria/África, de festejar ações neocoloniais privadas brasileiras, e de garantir que a contrapartida das nações pobres em razão das “bondades” brasileiras (perdão de dívidas, investimentos, imposto zero) era votar no Brasil para o Conselho de Segurança da ONU, as narrativas de O Globo e da Folha de S.Paulo passam a criminalizar diretamente a aproximação de Lula com a comunidade lusófona, de modo especial com os africanos. É isso que veremos no próximo texto.
Referências
Anderson, B. (1993). Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México: FCE.
Arbex Júnior, J. (2002). Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela.
Esposito, R. (2005). Immunitas: protección y negación de la vida. Buenos Aires: Amorrortu.
Júnior, W. M. (2013). Política externa e cooperação técnica: as relações do Brasil com a África durante os anos FHC e Lula da Silva. Belo Horizonte: Editora: D’Placido.
Miguel, L. F. (2002). Os meios de comunicação e a prática política. Lua Nova, São Paulo, n. 55/56, p. 155-184.
Zamin, A. (2014). Jornalismo de referência: o conceito por trás da expressão. Revista Famecos. PUC/RG, Porto Alegre, v. 21, n. 03, set./dez, p. 918-942.