Esta semana, ao ser diagnosticado com a COVID-19, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, lançou mais uma de suas pérolas. Disse aos jornalistas que o entrevistavam que o Coronavírus é como uma chuva, atingirá a todos. Curiosamente, nenhum dos jornalistas presentes se deu ao trabalho de perguntar ao Sr. Jair Bolsonaro por que é que apenas no Brasil – e também nos Estados Unidos, talvez – o vírus se assemelha a uma chuva fatal, que atingirá a todos indistintamente e sem que seja possível evitar o contágio. Por que em outros países não foi e não é assim? Por que em outros países houve os que se molharam e também aqueles muitos que saíram secos e ilesos?
Se questionado a esse respeito, possivelmente o presidente responderia com sua velha retórica geoestatística primeva: diria que o Brasil é um país continental, com duzentos milhões de habitantes, que não pode ser comparado a países menores etc. e tal. Qualquer jornalista medíocre derrubaria esse argumento perguntando sobre a China que, caso o presidente do Brasil não esteja bem lembrado, possui uma população de quase dois bilhões de habitantes, foi o nascedouro da pandemia e hoje ostenta números de contaminação e óbitos infinitamente inferiores aos brasileiros. Feito isso, muito provavelmente haveria um pequeno e corriqueiro ataque de fúria e o presidente daria por encerrada a entrevista.
Nada disso, contudo, aconteceu. Bolsonaro afirmou que o vírus é uma chuva, que todos irão se molhar, e a coisa ficou por isso mesmo. Analogia interessante, conclusão estúpida. Só se molha com a chuva quem dela não se protege, quem está fora de casa e, quando nas ruas, despe-se de guarda-chuva, galochas ou capa de chuva, por exemplo. Quem está desnudo na chuva realmente irá se molhar, mas quem dela se abriga, dificilmente o fará, a menos que se trate de um fenômeno natural de proporções gigantescas e força poderosíssima, do tipo que destelha edificações e põe a nu casas e vidas.
O mesmo se passa com o vírus, guardadas as devidas proporções e peculiaridades. Aqueles que dele se protegem, mantendo-se abrigados em casa, afastados do contato com outras pessoas, utilizando máscara corretamente e adotando os procedimentos de higiene necessários, terão sempre muito menor probabilidade de contágio que os que se expõem inadvertidamente. Daí, reforçam todos os especialistas, a relevância do isolamento social e, em muitos casos, até do lockdown para a prevenção do mal.
Ocorre que no Brasil, com a ajuda do presidente da República, as pessoas decidiram enfrentar a chuva nuas! Assim é que as cidades, praticamente todas, voltaram à sua rotina normal, com todas as atividades econômicas abertas – exceção às escolas –, ostentando ruas e centros comerciais apinhados de gente, onde se pode ver uma infinidade de pessoas utilizando máscara incorretamente ou simplesmente desprezando o seu uso. Um cenário assustador! Paralelamente, nas farmácias, dúzias de pessoas fazem fila à procura de pseudomilagres científicos, remédios apenas sugeridos pela própria ciência como possíveis alternativas para a prevenção ou o tratamento da doença, sem qualquer confirmação de eficácia até o momento: a cloroquina, medicamento utilizado no tratamento da malária, associado a elevado risco cardíaco, mesmo assim propagandeado inescrupulosamente por Bolsonaro e produzido a toneladas com dinheiro público pelo Exército brasileiro; e a ivermectina, remédio destinado ao tratamento de piolhos, sarna e outros parasitas, cujos efeitos colaterais podem vir a confundir os próprios sintomas da COVID-19.
O comportamento do brasileiro em meio à pandemia do Coronavírus faz pensar no que diz José de Souza Martins[1] sobre nos apegarmos muito mais às aparências do fenômeno moderno no Brasil do que propriamente à sua essência. Somos modernos de fachada, anômalos, fingimos a todo custo uma racionalidade que, todavia, nos falta. Domina-nos o pensamento mágico, aquele que deposita na fé todas as suas esperanças. Um pensamento mágico que, para se passar por moderno, traveste-se de racional: enquanto igrejas e templos seguem fechados aos cultos, fiéis de todos os matizes lotam farmácias em busca de uma ciência que, sabem, a própria ciência ainda não comprovou a eficácia. É a fé e não a razão quem compra cada caixa de cloroquina ou ivermectina para a prevenção ao Coronavírus no Brasil.
Com esse racionalismo de fachada, o brasileiro cria as condições ideais para fazer duas das coisas que mais aprecia: apelar para a fé cega e reclamar da vida. Pede-se a Deus para, apesar da nudez ante à tempestade, não se ser atingido por nenhuma gota e, quando enfim encharcado, tece-se um rosário de reclamações sobre tudo e todos, exceto sobre si próprio e seu comportamento inconsequente.
Tendo um brasileiro comum à frente da Presidência da República, o Brasil segue nu na tempestade, esperando que um milagre o salve da força das águas, insciente, contudo, de que milagres não existem.
[1] MARTINS, José de Souza. A Sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo, HUCITEC, 2000.
Foto: Presidente Jair Bolsonaro em Brasília 18/03/2020 REUTERS/Adriano Machado