Da mesma maneira que o cineasta paulista Fernando Grostein Andrade faz na apresentação de seu mais recente longa-metragem documental “Quebrando Mitos (2022, co-dirigido por Fernando Siqueira), convém esclarecer que uma quota intensa de subjetividade é adotada nesse texto – o que costuma ocorrer com frequência nessa coluna, aliás: tais linhas estão sendo publicadas antes do resultado da eleição brasileira que ocorre em 02 de outubro de 2022. Será que o candidato à reeleição Jair Messias Bolsonaro consegue empurrar a sua campanha para um segundo turno ou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva logra eleger-se no primeiro turno, conforme apregoam as pesquisas? Torcemos ostensivamente pela segunda possibilidade!
Falando agora sobre o filme: contando com o subtítulo “A Frágil e Catastrófica Masculinidade de Bolsonaro”, este documentário é, na verdade, um relato sobre as experiências íntimas do realizador em relação à assunção de sua própria homossexualidade. Neste sentido, é um filme que tem muito em comum com “Democracia em Vertigem” (2019, de Petra Costa, comentado aqui). Tal qual acontece lá, a narração em tom merencório possui crucial importância na organização dos efeitos emocionais que desejam ser imputados no espectador. Porém, além da dicotomia genérica entre esquerda X direita, há outra bem maior nas entrelinhas de cada situação analisada: as conotações classistas, ainda que os embates inevitáveis entre ricos e pobres pareçam oportunamente escamoteados pelas alegadas boas intenções do diretor…
Habilmente, a derradeira reflexão do filme – que surge de maneira um tanto abrupta na exposição de dados e notícias compartilhadas – é a de que “as pessoas são muito mais complexas que as suas dualidades”. Portanto, malgrado o narrador assumir-se riquíssimo (é filho de um editor da outrora consagrada revista Playboy), seu relato afetado é válido enquanto testemunho particular de experiências traumáticas com a perseguição homofóbica, que foram abundantes, a despeito de seus privilégios aquisitivos.
Como o realizador dispõe de ampla influência midiática – é um dos idealizadores da página “Quebrando o Tabu”, que aproveita o título homônimo de um filme que ele dirigiu em 2011 –, ele obteve entrevistados influentes, como o ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso, além de reaproveitar imagens veiculadas em diversas emissoras de TV. Chegou mesmo a ter acesso ao acervo pessoal de fotografias do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, convertendo-o numa espécie de co-protagonista do filme, junto a si mesmo: de um lado, Fernando “saindo do armário”; do outro, Jair despejando ódio. No primeiro aspecto, admitimos, funciona bem (dentro dos limites classistas anteriormente mencionados); no segundo, entretanto, talvez provoque reações contrárias às desejadas…
Em determinado momento, o diretor entrevista um ex-assessor de imprensa do atual presidente, que confessa que, quando os jornais publicavam alguma frase negativa do então deputado, eles a distribuíam entre os apoiadores do político de extrema-direita, visto que seus eleitores identificavam-se afirmativamente com os seus preconceitos. Se isso é tematizado de maneira tão explícita, porque o filme insiste em repetir eventos e declarações já muito desgastadas, no que tange ao odioso conservadorismo moral do candidato refutado? Infelizmente, isso faz com que o documentário torne-se uma campanha eleitoral involuntária para Jair Bolsonaro!
Ao insistir que o diferencial deste filme em relação a tantos outros produtos assemelhados é a narração com voz frágil – em contraposição à gravidade tonitruante da maioria dos narradores masculinos –, o diretor-personagem consegue algum êxito ao estimular a empatia, que, segundo o texto lido, deve ser mais enfática que a apatia nas situações por ele descritas. Mas, por investir na reprodução de argumentos repetitivos, ele propõe-se menos ao debate transformador que à autocelebração ideológica (e também egoica): é um filme feito para agradar quem já votaria contra o atual presidente, e não para estimular uma mudança de postura em quem concorda com ele…
O trecho que enumera os feitos incríveis da vereadora Marielle Franco (1979-2018) – brutalmente assassinada aos trinta e oito anos de idade, após cumprir menos de um ano e meio de mandato –, é muito interessante, sobretudo porque ecoa a fala do deputado autoexilado (depois de sofrer várias ameaças de morte) Jean Wyllys, que diz que “as ideias são à prova de balas”. Porém, ao carecer de um elemento radicalmente inverso para comparar-se, a fim de reiterar os apanágios sexualistas do diretor, o filme faz com que questionemos a própria validade de Fernando Grostein Andrade enquanto defensor das ditas minorias sociais: por que ele não declara, em sua narração, que é irmão do apresentador televisivo Luciano Huck? Porque ele insiste em acrescentar os versos cantados em inglês (sobre a Califórnia), por seu marido Fernando Siqueira (que aparece como FS2, nos créditos finais), num produto que versa sobre problemas eminentemente brasileiros? Quando criança, após lidar com a morte repentina do pai, Fernando foi entrevistado por um programa de TV, onde ele demonstrou-se um exímio orquidófilo, em plena adolescência. Isso fez com que ele recebesse o apelido de “florzinha” na escola, mas o torna um defensor automático de todos os homossexuais? De coração, o que nós esperamos é que Lula volte a ser eleito!