Isto que vou dizer parecerá um contrassenso; mas não é.
Devemos, ou não, ser fieis a nós próprios, aos nossos objectivos, às nossas crenças e aos nossos valores?
A resposta a isto não é simples, nem complexa, mas pode ser longa, repleta de diálogos – interiores ou não -, cheias de questionamentos filosóficos, e racionais, e confusa…
Vejamos…
Nós próprios é uma entidade que se subentende como nós; isto é: quem nós somos. E quem é que nós somos?
Esta é uma pergunta com rasteira, porque – efectivamente – poucos de nós a fazemos e, somos ainda menos, aqueles, que conseguimos chegar a uma resposta. E porque será assim?
Porque «nós próprios» é uma entidade em construção; desde o dia em que nascemos até ao dia em que morremos…
Por isso, o ser fiel a nós próprios, aos nossos objectivos, às nossas crenças e aos nossos valores, é algo que pode assumir diferentes aspectos, formas e comportamentos ao longo da vida.
Considerando que os nossos objectivos podem mudar ao longo da nossa vivência e que isso pode ser resultado de alterações nas nossas crenças que, por sua vez, transformam os nossos valores, parece-me que estamos perante uma equação complexa com múltiplas variáveis que se influenciam umas às outras – muitas vezes – de forma inesperada.
Então, na verdade, o ser fiel a nós próprios, é algo que apenas nós próprios poderemos saber o que é; e que – a bem da verdade, se diga – pode, aos 20 anos, ser algo muito diferente do que era aos 15.
No entanto, há um conjunto de regras que nos são impostas pela sociedade; é uma miríade de instruções, quase inconscientes, que se vão instalando em nós, das mais diversas maneiras, e que nos vão dizendo como devemos ser, como nos devemos comportar, o que os outros esperam de nós e o que nós poderemos esperar dos outros.
Este corpo de regras passa a integrar quem nós somos; mas só em parte. Para muitos de nós, o processo de socialização não é simples, porque as regras que nos impõe não nos fazem sentido; ou porque – simplesmente – somos diferentes da maioria, neste ou naquele aspecto. Quando isto acontece, temos formas de estar e de nos comportar que chocam os outros e que, por isso, não são bem aceites.
Antes de prosseguir, gostaria de ressalvar que as regras são feitas para as maiorias e que as maiorias é que reinam e acho isso natural; as minorias, contudo, têm de ter o direito de ser diferentes sem que isso as prejudique…
Infelizmente, não é assim. O prejuízo das minorias existe; não oficialmente, mas encapsulado nos ditames do que é normal. Acha-se, por exemplo, natural que uma pessoa diferente seja tratada de forma distinta das demais, embora no mau sentido; isto é, não se trata de modo diferente porque se aceite a sua diferença, mas porque sendo diferente se discrimina…
E é assim que coisas tão simples, como acreditarmos profundamente em nós próprios, nas nossas competências, e não vacilarmos perante a rejeição dos outros, nos tornam um alvo a abater. Porquê?
Porque sermos fieis a nós próprios, neste caso, vai contra o conjunto de instruções de socialização que diz que sermos confiantes perante outros é arrogância, é falta e humildade e vaidade. É estranho, não acham?
Afinal, fartamo-nos de ouvir apelar à confiança pessoal, ao auto-conhecimento e ao respeito por nós próprios e, depois, quando o conseguimos, somos discriminados… Porque será?
Francamente, não sei… Mas estou certo de que todos nós, em algum momento da vida, sentimos isso; e ficámos perplexos, injustiçados, incrédulos, enraivecidos…
E como fazer, então?
É simples… O sermos fieis a nós próprios – aquilo que só nós sabemos se o somos ou não – não implica anunciar ao mundo que o somos, porque – na verdade – não há ninguém no mundo que tenha forma de saber se isso é assim ou não. Implica, isso sim, fazermos aquilo que nos prejudicará menos; e se isso implicar fingir que ficamos tristes e desolados com a atitude de um estarola qualquer, que seja… No final de tudo, continuaremos fieis a nós próprios, porque a nossa confiança continua cá – intacta -, mas a discriminação – essa – não teve lugar, pois o estarola continuará a achar-se empoderado e não sentirá necessidade de nos humilhar; talvez até do alto da sua vaidade nos conceda aquela oportunidade de que precisamos… E nós?
Nós?! Nós continuaremos fieis a nós próprios, porque – na verdade – interpretámos um papel para que pudéssemos continuar a sê-lo; e um dia mais tarde, já sem a necessidade do reconhecimento de nenhum estarola, poderemos tentar mudar o mundo de acordo com o que achamos mais correto.
Imagem de Aaron Cabrera por Pixabay
Uma resposta
PJVulter, gostei do seu artigo. Acho bastante apropriado o tema. Contudo, creio eu, que houve mais uma série de confusões do que de compreensão no que você disse. Bem, inicialmente não sou filósofa ou socióloga, por isto, minha percepção parte de alguém tosco que com limitações, inicialmente não foi capaz de compreender.
Estarola é um termo que não usamos no Brasil, não que eu saiba, e gostei de saber o significado. Nosso presidente é um estarolo! (isto podia pegar aqui! Rs), mas voltando…
Você diz que “«nós próprios» é uma entidade em construção; desde o dia em que nascemos até ao dia em que morremos…”, não concordo. O indivíduo é assim, não o “nós próprios”, este, o ente social que se apropria de uma identidade social e humana. Esta muda mas mais na linha do tempo da história que no período de 70 ou 80 anos. Tem a piadinha do zorro com o Tonto que encurralados por outros caras vermelhas por flechas apontadas diz: – P… Tonto! Estamos F…!”, e o Tonto responde com seu arco apontando para o Zorro: ” – Nós quem cara pálida?” (rs), é neste sentido que vos falo. Nós não pode ser todo mundo tomado como pessoa única e indivisível.
Quando diz que “O prejuízo das minorias existe; não oficialmente, mas encapsulado nos ditames do que é normal. Acha-se, por exemplo, natural que uma pessoa diferente seja tratada de forma distinta das demais, embora no mau sentido; isto é, não se trata de modo diferente porque se aceite a sua diferença, mas porque sendo diferente se discrimina…” Concordo com a discriminação, mas esta minoria faz parte de um “nós próprio” a parte do todo que não pode ser tratado de forma individual como uma condição de personalidade ou nascença. É uma das expressões do ser humano social, que por razões patriarcais e econômicas são tidas como erradas. Então, creio que não se trata como disse de uma aceitação da diferença, ou discriminação da diferença, penso que é de uma compreensão deste nós humanidade e não nós próprios que permite que selos de lutas sejam identificados por seu sofrimento. Quando digo, “nós próprias” as mulheres, estou intencionalmente excluindo os homens de algo que não lhes cabe. Quando digo nós próprios negros, estou excluindo e restringindo a todo um aspecto de luta racial. Quando digo nós próprios pobres estou definindo que na composição social que existem outras pessoas em melhores condições de sobrevivência que a nossa, em uma discursão de luta de classe.
Enfim, concluindo, amei o texto, mas deixou a impressão que você partiu de uma visão do famoso homem branco de 40 anos que a vida sorri, por se tratar do perfil que o capital apoia. E neste sentido, parte-se da conclusão que este nós é este homem que deve aceitar ou absorver todas estas diferenças em si mesmo, aceitando-as. Mas não é assim. Somos todos humanos e ponto “.”! Eu e você, sendo eu apenas a fêmea de nossa espécie e você o macho. Sendo eu preta e você branco, como cor! O nós próprios também não pode admitir questões de mudanças básicas, até mesmo como a evolução e desenvolvimento individual pessoal que se corresponde com o mundo e consigo mesmo! “Eu Maria Lina” busco ser melhor a cada dia, como aprimoramento pessoal. Eu Maria Lina busco a igualdade de direito de “nós próprios” no que me define e criminaliza. Eu Maria Lina busco tornar este mundo melhor para as gerações futuras com um legado sustentável, pois o sentido de “humanidade” é muito maior que minha existência e advém do período das cavernas. Penso que você misturou tudo ou apenas partiu de seu olhar a vida que vos cerca, sugerindo que é assim para todos. Eu só faço parte do seu “nós próprios” na condição de humana sou!
“Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.” – Boaventura de Souza Santos
Forte abraço!
Maria Lina