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No Brasil, a comunidade lusófona não existe!

No Brasil, a comunidade lusófona não existe!

Nos últimos textos dessa coluna apresentamos uma série de números e dados para provar que, por meio dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, os maiores veículos da comunicação social no Brasil, a comunidade lusófona e a sua expressão mais institucional, a CPLP, sofreram e sofrem de uma forte e significativa invisibilização nos 20 anos dessa entidade.

Não estou a tratar de silenciamento pontual, de um esquecimento localizado ou de um lapso em uma edição ou em outra, mas de uma constante ausência, de um reiterado apagamento. Relembremos que, em média, foram somente 4 notícias por ano sobre a CPLP nos dois jornais e, algumas delas, pequenas notas concentradas em dias. Essa configuração nos faz pensar em um ambiente de uma experiência jornalística que impossibilita a memória, onde o mundo conhecido e inteligível apresentado aos brasileiros jornais não comporta a ideia de uma comunidade de que ele é parte. O jornalismo propõe, assim, um modo de experiência do invisível, através da invisibilização por ausência.

Apesar de empresas de comunicação social diferentes, a ausência da comunidade lusófona na Folha e em O Globo é extremamente semelhante, seja nos volumes, nas frequências ano a ano e mês a mês, nas temáticas abordadas, nos registros das fontes, nos locais em que foram publicados, nas assinaturas. Há um interagendamento dessa invisibilização nos dois jornais. Nas duas décadas (1996-2016), a CPLP foi revestida da ausência concreta – veja o paradoxo – sendo aplicados nela os critérios de uma não noticiabilidade. Há um quê na comunidade lusófona que não mereceria notícia. Basta ver que somente 1% de todas as edições em 20 anos teve um pequeno registro dessa comunidade.

Esses dados materializados parecem dizer de um “vazio” de uma comunidade de que somos parte, mas essa concretude da ausência nos permite aprofundar sobre jornalismo e os regimes de visibilização, exatamente por meio da construção do invisível. A invisibilização por ausência tem sua materialidade visível no próprio corpus que foi encontrado: 80 registros na Folha de S.Paulo e 81 em O Globo. O volume de notícias foi tão insignificante, dado ao universo do contexto (jornais diários em 20 anos), que essas notícias se diluíram e se perderam em meio às 7.300 edições de cada jornal, nas milhares de páginas impressas em duas décadas.

Os registros sobre a CPLP foram tão esporádicos que dificilmente se tem condições de reconhecer essa entidade e sequer desenvolver alguma sensação de pertença identitária dos brasileiros a essa comunidade. Podemos falar, assim, de histórias e memórias ocultadas, impedidas e manipuladas (Ricoeur, 2008). O grande volume que não foi dito e não foi visto preenche o invisível do regime de visibilização da comunidade lusófona no Brasil, regime de crença no que não existe, na experiência de uma ausência tida como verdadeira.

As raras notícias sobre a CPLP são como rastros visíveis das torções dos silêncios e das palavras que atravessaram o regime de visibilização nos dois jornais. Do ponto de vista jornalístico, diante de tão escassas notícias em um longo período, podemos perguntar: o que vemos aqui? Quais propostas de mundo que apresentam a Folha e O Globo aos seus leitores em se constatando a ausência de uma comunidade a que pertencemos? A coletânea de 81 notícias, em O Globo e 80 na Folha, diz do visível ou do invisível? Todas essas perguntas nos conduzem às mais inquietantes de todas elas: O que não vemos aqui? Por que não vimos aqui?

Ressaltamos que a experiência do invisível que temos nesse caso, a identificação desse enorme Minuto de Silêncio que fazemos sobre a comunidade lusófona, somente se tornou possível por essa narrativa que propomos aqui, que você vê e lê, e que buscamos enxergar e encontramos a sua ausência, uma ausência talvez como resposta do próprio visível. Se utilizássemos as mais tradicionais teorias sobre o Jornalismo diante dos números visíveis da CPLP, sem problematizar o regime de visibilização, os resultados poderiam indicar uma falsa visibilização, ou talvez fossem tratados mesmo como visibilidade. Talvez, considerar que a maior parte das informações e dos sentidos está invisível ajuda a responder uma pergunta central: o que não vemos aqui?

Se considerássemos esse corpus como o todo visível nele mesmo, como sinônimo de visibilidade – mesmo que pequena da CPLP – estaríamos a reforçar a supremacia do expresso, a força totalizante da materialidade sobre silenciamentos e invisibilizações. O que buscamos ressaltar está exatamente naquilo que não foi publicado, no que deixou de ser ou sequer foi dito e visto nos jornais Folha e O Globo sobre a CPLP em 20 anos. Entretanto, as raras notícias não podem ser desprezadas, muito ao contrário, atribuímos a elas valor, a começar pela condição de denúncia dessa mesma invisibilização. Essa ausência construída ao longo do tempo é tão parte da mesma proposta narrativa do jornalismo quanto a decisão do pouco noticiado sobre essa comunidade.

Essa reflexão possibilita discutir que a seleção e a publicação de determinadas temáticas nos jornais não passam necessariamente pelo debate sobre a ação consciente ou inconsciente. O que se tem, em grande medida, é uma ação política sustentada em valores econômicos, culturais, morais, identitários que fundamentam, cada vez menos de forma sutil, os critérios de noticiabilidade. Se a seleção para a inclusão é uma atitude política, a exclusão, o que ficou de fora, o não dizer, o não mostrar, também é e de igual peso, se não for superior. A ausência é uma clara ação e efeito de poder, de poder calar, de poder não mostrar. Indiciamos que, no caso da CPLP, da comunidade de que fazemos parte, essa invisibilização tem bases na história e nas identidades.

Uma marca importante em “sociedades dependentes”, como a nossa, é o seu silenciamento (Freire, 1976). Na perspectiva identitária, a ausência da CPLP nos jornais pode ter lastros no processo de construção do Outro, da diferença que, em princípio, não deve ser vista e que não se quer que seja vista. Essa é uma questão em que avançaremos nos próximos itens. Por enquanto, sabemos esses dados, números e gráficos nos permite experimentar mais as ausências do que as presenças.

Com a decisão de não falar e de não mostrar, os jornais agem como agentes de impedimento, a produzir um tipo de censura sutil que não consente a experiência do reconhecimento entre nós, na medida em que silenciam reiteradamente a comunidade, nesse caso. Entretanto, toda ação deixa vestígios, mesmo as que objetivam apagá-los. Por isso, fizermos emergir rastros nos restos das notícias sobre a CPLP e que pareciam perdidos no universo gigantesco das páginas dos dois jornais ao longo de 20 anos. Esses restos são como “relâmpagos” (Deleuze, 2005), pontos minúsculos de luzes dispersos, mas juntos, narrativamente, transformam-se em uma ausência presente.

Desculpas técnicas, como o não atendimento dos critérios de noticiabilidade fazem parte de uma retórica política que vem da modernização encenada e autoritária da imprensa no Brasil, a partir dos anos 1950, para tentar justificar as invisibilizações. Essas alegações acabam reforçando valores ideológicos das empresas, do negócio jornal para além do jornalismo, o que pode explicar o porquê de periódicos diferentes terem adotado o mesmo modus de proposta de construção do invisível da CPLP em duas décadas, isto é, os mesmos valores gerais parecem cultivados pelos dois jornais.

Sobre a comunidade lusófona, a Folha e O Globo estabeleceram um mesmo regime de visibilização, em que a ausência é a condição inercial. Entretanto, esses jornais teriam a obrigação de noticiar a CPLP? Não estaríamos a exigir deles a perfeição para contar e mostrar tudo? Não. Não se estabeleceu aqui um padrão, um ideal de jornalismo, e nem se exige da Folha e de O Globo o impossível. O que estamos propondo é a reflexão, o exercício crítico da construção do regime de visibilização no jornalismo. E, sendo assim, importa indagarmos: que mundo é esse que os jornais adotam, traduzem e propõem para nós? Sugerimos que as respostas não estão na imagem-superfície apresentada por eles, mas na convocação de uma experiência que, nesse caso, vem se dando a partir de silenciamentos reiterados e de invisibilizações.

Lembremos que a utilização do nome “comunidade”, que serve para reunir povos e países de língua portuguesa, não é uma ação retórica; suas relações não são superficiais ou somente estabelecidas por decretos. Entre os povos lusófonos há fortes articulações e raízes profundas e históricas que permitem suscitar sentimentos de pertença e de diferença, mas jamais de indiferença. Estamos falando de uma comunidade móvel e que mobiliza meadas de fios de passados, presentes e futuros que nos entrelaçam desde o século XV e que se estendem por África, Ásia, América e Europa. Por força das línguas, das culturas, dos trânsitos e pontes entre as colônias e entre estas e a metrópole navega a possibilidade do entre nós.

Nesse ambiente, o Brasil é um lugar privilegiado em razão da presença dos portugueses e de outros europeus; das resistências, extermínios de índios e negros; do longo e violento sistema escravagista, e de incontáveis troncos de mestiços que, juntos, constituem-nos como povo. Para além das intensas relações históricas e identitárias e que resultaram em nós, do ponto de vista institucional, como observamos, o Brasil foi um dos articuladores para a criação da CPLP. Além disso, o governo brasileiro esteve no comando dessa entidade em 2001 e 2002, uma institucionalidade materializada em encontros, acordos e convênios, mas de pouca atenção do governo, e que também se traduziu em pouca visibilização.

O fato é que, mesmo sendo raros e esporádicos, os registros sobre a CPLP existem como presenças a revelar torções de silêncios e de palavras por meio dos jornais. As poucas notícias denunciam essa ausência presente. Nesse caso, mobilizar os números e dados como fizemos constitui um modo da experiência da ausência que, como se pode perceber, não é vazio. A ausência é composta por valores e sentidos para ela mesma e para a conformação do visível.  Os poucos registros que encontramos são como anúncios dos jornais a nos propor um longo minuto de silêncio. Neles, emergem “rastros” (Ginzburg, 1989, 2007) como presenças impertinentes do invisível a exigir de nós as narrativas sobre a invisibilização.

É esse zumbido que atravessa esse percurso de invisibilização e que nos obriga a ir além, talvez ir em busca dos sentidos para essas ausências no Brasil dos primeiros 20 anos da CPLP.  O gesto que propomos é mexer, vasculhar, catar as notícias para tentar fazer emergir indícios que possam nos ajudar a refletir sobre o porquê dessas ausências reiteradas. É isso que traremos no próximo texto dessa coluna.

Referências

Deleuze, Gilles (2005). Foucault. São Paulo: Brasiliense.

Freire, Paulo (1976). Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Ginzburg, Carlo (1989). Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Cia. das Letras.

Ginzburg, Carlo (2007). O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras.

Ricoeur, Paul (2008). A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp.

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