EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

Nas rebarbas do Oscar 2020: “quando tu consegues um pouco de poder, podes te converter num monstro”

Nas rebarbas do Oscar 2020: “quando tu consegues um pouco de poder, podes te converter num monstro”

Malgrado ser um dos melhores diretores norte-americanos ainda em atividade, eventualmente Clint Eastwood envolve-se em polêmicas políticas por conta de seu apoio aos candidatos republicanos dos EUA e por suas opiniões contra o “politicamente correto”. Entretanto, sua filmografia percorre um caminho tematicamente inverso: ultrapassa o esquerdismo explícito de alguns cineastas afobados ao erigir um ‘corpus’ sobremaneira sólido, em que protagonistas injustiçados são defendidos de maneira incisiva, sobretudo contra os desmandos de representantes da Nação que os acolhe enquanto cidadãos. Ou seja, tal cineasta é um patriota irrepreensível, mas não esquiva-se quando é necessário denunciar as más ações de homens poderosos e do “lado certo da Lei”.

Em seus filmes imediatamente recentes, biografou diversas estórias reais sobre homens que passaram de heróis a réus em pouco tempo, geralmente pelos mesmos feitos que os consagraram. E é o que ocorre novamente em “O Caso Richard Jewell” (2019), deveras elogiados pelos críticos como um dos melhores filmes do ano de seu lançamento, mas indicado apenas a uma categoria no Oscar 2020: o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante para a veterana Kathy Bates, que interpreta a mãe do protagonista.

Na trama, uma descrição contextual bastante reconhecível: o personagem-título, impecavelmente vivido pelo pouquíssimo conhecido Paul Walter Hauser, é um assistente de segurança que sempre sonhou em ser policial. Vítima de zombarias pelos colegas de trabalho, por ser gordo e ainda morar com a mãe, Richard Jewell comporta-se como um ‘nerd’ típico. Em seus intervalos de almoço, compensa a solidão em partidas de jogos eletrônicos, onde também despeja seu apreço pelos instrumentos balísticos. Com o passar do tempo, consegue um emprego na vigilância dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, quando salva centenas de pessoas da explosão de uma bomba num evento musical. Entretanto, passará a ser o principal investigado neste crime, visto que seu perfil solitário incrimina-o como potencial suspeito…

Na primeira seqüência do filme, passada dez anos antes do fatídico evento, Richard Jewell chama a atenção do advogado Watson Bryant (Sam Rockwell, excelente), ao demonstrar-se extremamente zeloso quanto à satisfação das necessidades materiais do escritório para o qual trabalham. Numa conversa de despedida, Watson aconselha Richard a manter-se longe das artimanhas destrutivas do poder, e entrega-lhe uma nota de cem dólares como espécie de ‘quid pro quo’ moral, o que será fundamental na condução discursiva do roteiro, escrito com a consultoria da mãe do verdadeiro Richard Jewell, que faleceu vítima de um ataque cardíaco em 2007, aos 44 anos de idade.

Apesar de ser inocente, em nenhum momento Richard Jewell obstrui ou discorda das técnicas invasivas de investigação levadas a cabo pelo FBI, quando invade a sua intimidade familiar em busca de evidências que o associem à explosão que ele detectou, poupando as vidas de várias pessoas. Seu advogado, fortuitamente contratado após um arremedo de amizade, tenta fazer com que ele se irrite e manifeste repúdio aos desmandos governamentais e midiáticos que esfacelam a sua vida pública, mas ele mantém-se anuente, respondendo a todas as perguntas e permitindo todas as táticas de perquirição. Diz-se muito sobre o ‘modus operandi’ eastwoodiano neste sentido: enquanto cidadão norte-americano, defende-se que as instituições coercitivas chafurdem cada aspecto das vidas de potenciais suspeitos, a fim de que chegue-se, afinal, à detecção dos verdadeiros culpados. Mas, até que isso aconteça, até que ponto é lícito responsabilizar alguém ainda sob investigação?

No afã por responder a esta pergunta sob a cumplicidade reativa dos espectadores, o roteiro – escrito por Billy Ray mas moldado pelos interesses recorrentes do cineasta – faz com que acompanhemos a rotina obediente aos regulamentos de Richard e que conheçamos a inescrupulosa jornalista Kathy Scruggs (interpretada por Olivia Wilde), que publica a notícia sobre a suspeitabilidade envolvendo Richard Jewell após seduzir sexualmente um dos investigadores do FBI. E, em sua última aparição em cena, Kathy será vista lacrimejando, enquanto a mãe de Richard mais uma vez chora publicamente ao defender a inocência do filho. Clint Eastwood evita as generalizações acusatórias ou as utopias salvaguardadoras: acredita piamente nas instituições de seu país, mas não esconde que, por mais bem-intencionados que sejam os homens, estes também cometem erros. E, assim, “O Caso Richard Jewell” torna-se muito mais interessante em termos deontológicos que propriamente por suas virtudes cinematográficas, que corroboram os méritos narrativos do extraordinário diretor que é Clint Eastwood.

Por motivos óbvios, este filme deveria estar indicado em mais categorias no Oscar 2020, principalmente em categorias técnicas e interpretativas (em dado momento, por exemplo, a montagem compara o percurso de um velocista a uma investigação paralela do advogado, em defesa de seu cliente), mas foi eclipsado por uma safra hollywoodiana maravilhosa, devidamente cooptada pela esquerda política. Teria este filme sido vítima de um julgamento alvoroçado similar àquele que acusou Richard Jewell? Se estivéssemos nós em posição de perscrutá-lo, concordaríamos com o seu inequívoco pendor armamentista ou com o seu receio tremendo em ser tomado por um homossexual? São perguntas mui necessárias numa época de extrema polarização discursiva, advindas de um cineasta singular, que vai além, muito além, de qualquer restrição opinativa…

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]