No último feriado nacional de 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro hostilizaram e encurralaram um cinegrafista e um repórter da TV Vanguarda, afiliada da Rede Globo. A cena foi transmitida ao vivo pela CNN Brasil em plena celebração católica no Santuário Nacional de Aparecida, um local sagrado e de peregrinação, que atrai milhares de fiéis todos os anos. Os profissionais da imprensa acompanhavam a missa, que teve a presença do presidente Bolsonaro e, consequentemente, de seus próprios fiéis. Os jornalistas precisaram da ajuda de seguranças da TV Aparecida para deixar o local [1].
Uma semana antes, no dia 4 de outubro, profissionais da imprensa que cobriam a ida de Bolsonaro em campanha eleitoral a uma igreja da Assembleia de Deus no Brás, na capital paulista, também foram hostilizados, ameaçados e perseguidos por fiéis, de Bolsonaro e da própria igreja (sendo difícil distinguir de quem esses fiéis são mais fiéis). Após o fim do culto (a imprensa não pôde entrar na igreja), um grupo de bolsonaristas notou a presença dos profissionais e passou a hostilizá-los. De acordo com o Síndicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, policias militares que estavam no entorno foram embora, apesar do visível tumulto, deixando em risco os profissionais da imprensa [2].
Esses dois casos – o do Santuário Nacional de Aparecida e o da Assembleia de Deus – ocorridos nas duas primeiras semanas de outubro, se somam a tantos outros casos de ataques a jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas e demais profissionais de imprensa que vêm crescendo no Brasil, tornando o exercício da profissão ainda mais difícil e o ambiente para a prática do jornalismo ainda mais hostil.
Já não é mais possível se surpreender sequer com o fato de os ataques terem acontecido em ambientes religiosos, que deveriam inspirar outros sentimentos que não o ódio. Não é a primeira vez que bolsonaristas atacam jornalistas durante as comemorações da padroeira do Brasil. Em 2021, também no Santuário Nacional de Aparecida, o cinegrafista Leandro Matozo e o repórter Victor Ferreira foram insultados pelo bolsonarista Gustavo Milsoni, de Mogi das Cruzes (SP). Após xingar a equipe de reportagem e dizer que “se pudesse” mataria os jornalista, Milsoni cabeceou o cinegrafista, que ficou ferido. De acordo com Victor Ferreira, o agressor foi liberado da delegacia antes mesmo dele e de seu colega de trabalho, o agredido, e “ainda pegou carona no carro da PM para voltar ao santuáro” [3].
“Ne nuntium necare”
Quem assistiu a filmes cujas histórias que se passam em tempos remotos, como a Antiguidade ou a Idade Média, já deve ter visto idas e vindas de mensageiros aliados ou inimigos em guerras e batalhas, O filme Cruzada (2005), de Ridley Scott, é um dos muitos exemplos e mostra a atuação e o infortúnio de um desses mensageiros [4]. Nem sempre eles acabavam bem. Por isso, há um antigo provérbio latino que diz “Ne nuntium necare”, ou, em bom português, “Não mate o mensageiro”. Ele remonta a essas guerras muito antigas, das quais há relatos de que grandes líderes e imperadores matavam os mensageiros que lhes traziam notícias ruins.
Era um mundo bem diferente do que há hoje. Não havia TV, rádio ou internet. O modo de se obter informações era, por exemplo, por meio dos mensageiros. Dario III, rei da Pérsia, derrotado na guerra, teria determinado a morte do mensageiro que o informara que seus guerreiros sucumbiram ao exército de Alexandre, o Grande [5]. O filósofo grego Plutarco nos conta que o mensageiro que anunciou ao rei armênio Tigranes a chegada do exército romano teve sua cabeça cortada. E então ninguém mais se atreveu a trazer mais (e más) notícias ao rei, que passou a viver cercado de aduladores [6]. O governante do império Mongol Gengis Khan (o rosto na ilustração deste artigo, criada por André Bacchi) também estaria entre os líderes que tinham o “péssimo hábito” de matar os mensageiros que lhes traziam notícias ruins [7]. Sobre matar mensageiros, Marco Antônio dos Santos Martins diz o seguinte:
A motivação desta decisão pode ser analisada, no mínimo, a partir de dois ângulos: um pessoal e outro político. O pessoal provém da irritação de quem se crê “soberano”, e vê a realidade contrariar seus desejos, os quais deveriam estar acima de tudo, por ser a expressão das necessidades divina. Já o componente político passa pela intenção de evitar que outros, além do soberano, tenham acesso à informação [5].
Jornalismo profissional e crescimento das TICs
Uma das características de estados democráticos é a liberdade de imprensa. Podemos até discutir em que medida a imprensa e a mídia em geral são de fato livres e imparcias em diversos países pelo mundo. Obviamente precisamos ter sempre uma leitura crítica do conteúdo que consumimos por meio da imprensa que, por sua vez, precisa ter autocrítica a respeito do clima hostil que existe atualmente no país (o artigo da jornalista Milly Lacombe é contundente e preciso nesse sentido [8]). Mas, como me dizia um ex-chefe e colega de trabalho, “se a carta é ruim, a culpa não é do carteiro”. Ou, nas palavras de Marcelo Tertuliano: “quando digo para ‘não matar o mensageiro’, refiro-me ao fato de que é imprescindível discernir entre o mensageiro e a mensagem” [7].
Com o surgimento e popularização da internet nas últimas décadas do século 20, seguidos pelo crescimento das mídias digitais e redes sociais nas primeiras décadas do século 21, por sua vez seguido das bolhas informacionais produzidas pelas lógicas algorítmicas, muitas pessoas ficaram um pouco tirânicas em relação à informação. Ainda que o receptor (leitor, telespectador, ouvinte) não seja um governante de um império, como Gengis Khan, ele também mata o mensageiro, de formas diferentes.
Isso porque com as bolhas informacionais houve uma customização da informação: as pessoas aos poucos se acostumam a moldar o ambiente informacional no qual estão inseridas de modo a receber apenas informações com as quais concordem, afastando as informações desagradáveis e dissonantes, assegurando para si uma certa zona de conforto. Os algoritmos fortalecem o processo gerando um círculo vicioso, oferecendo mais do mesmo, por conta de sua lógica comercial. Isso acontece principalmente por meio das redes sociais (Twitter, Facebook, Instagram, Whatsapp…) e terminam por afetar outras instâncias das relações interpessoais. Por exemplo: brigas de famílias podem ser provocadas nos ambientes digitais e se estenderem aos encontros familiares presenciais, com grupos de parentes divididos conforme as opiniões.
Com todo esse desenvolvimento das tecnologias digitais da informação e comunicação (TICs), mais do que um pouco tirano, muita gente virou expert no trato da informação. Mas claro que, no fundo, a coisa não é bem assim. Por mais que todos se julguem esclarecidos e hábeis no trato com a informação, quando observamos a nossa coletividade, ou seja, nossa sociedade como um todo, nunca tivemos tantos problemas de desinformação em massa, a ponto de prejudicar sensivelmente nossa esfera pública e nossa democracia. Mas, embora para alguns analistas, episódios como a pandemia de covid-19, que trouxe a reboque uma pandemia de desinformação (ou desinfodemia) [9], tenham servido para reforçar o papel fundamental do jornalismo profissional no mundo contemporâneo [10] [11], não é fácil convencer os indivíduos desse papel fundamental.
Viés de confirmação e dissonância cognitiva
O cientista social Davi Carvalho nos lembra que as pessoas creem em informações falsas porque, normalmente, essas informações falsas são condizentes com aquilo que elas já acreditavam previamente. ‘Tendemos a buscar e a privilegiar informações condizentes com nossas crenças pré-existentes” [12]. Esse fenômeno é conhecido na psicologia social como viés de confirmação. E quando conseguimos provar a alguém que determinada informação que ela acredita e compartilha é falsa ou uma distorção, disparamos nela a dissonância cognitiva, algo que normalmente as pessoas detestam.
A dissonância cognitiva pode ser definida como o mal-estar psicológico que sentimos quando temos valores ou crenças em contradição. Essa tensão psicológica é disparada quando nos deparamos com evidências que contradizem qualquer crença pré-estabelecida. Um exemplo bastante claro disso é quando alguém que crê em uma fake news tem sua crença confrontada com a informação verdadeira. Quando isso acontece, a pessoa passa a ter duas cognições dissonantes em sua mente, a crença anterior e a nova informação, daí o fenômeno ter sido denominado “dissonância cognitiva” por seu criador, o psicólogo social Leon Festinger. [12]
Porteira aberta para o negacionismo
Nesse contexto, a figura do jornalista profissional tem passado por mortes físicas, aqui representadas pelas agressões e intimidações como as anteriormente citadas, e também por mortes simbólicas, como o descredenciamento de seu papel e importância para a democracia e a esfera pública. Não tem sido fácil ser o mensageiro em um mundo em que as pessoas só acreditam no que querem acreditar, refugiando-se em bolhas de informação e rechaçando, de forma muitas vezes agressiva, as dissonâncias cognitivas.
Não escutar, dificultar a comunicação, ignorar o que chega ao seu conhecimento ou – pior! – criar situações de constrangimento para aqueles que são portadores de conteúdos que descortinam dados e fatos nem sempre positivos criam não apenas o distanciamento, mas o medo e a insegurança de quem gostaria de ver mudanças significativas, que poderiam melhorar processos, solucionar problemas e ampliar resultados [7].
Se você mata o mensageiro porque ele traz notícias ruins ou desconfortáveis, você seleciona só os mensageiros que trazem notícias boas. Não é um bom negócio viver cercado por aduladores e/ou mentirosos. Isso é a abertura de porteira para o negacionismo. E é um problema que vai além do jornalismo, afetando diversas áreas do conhecimento. O jornalista alemão Philipp Lichterbeck cita como exemplo a tentativa de Bolsonaro de criminalizar institutos de pesquisa no período eleitoral e como isso se encaixa em um quadro mais amplo do bolsonarismo de prejudicar a produção de conhecimento, um movimento essencialmente anticientífico e anti-iluminista.
Foi assim quando Bolsonaro acusou o renomado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) de falsificar dados sobre queimadas na Amazônia e despediu o diretor (e físico) do Inpe Ricardo Galvão. Foi assim na pandemia, quando o presidente defendeu o uso de um remédio contra a malária e desaconselhou a vacinação contra covid-19. Foi assim quando o governo cancelou o censo de 2021 ou quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que os dados sobre insegurança alimentar da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan) estavam errados [6].
Lichterbeck destaca que a hostilidade do bolsonarismo ao conhecimento científico culminou em cortes nos orçamentos para universidades e pesquisa, acarretando uma verdadeira fuga de cérebros brasileiros para universidades estrangeiras. E, mais do que dificultar a produção de conhecimento, o governo Bolsonaro tenta apagar as distinções entre verdade, boato e mentira, com o objetivo de criar confusão.
O uso racional do conhecimento e das informações, inclusive com coragem para lidar com as informações indesejáveis, é fundamental para tomarmos decisões mais adequadas para enfrentar os problemas reais, que não vão desaparecer apenas por fecharmos nossos olhos e ouvidos. Porque a realidade sempre nos cerca e nos alcança.
Pode-se dizer, em geral, que nunca é uma boa ideia fechar-se à verdade e ao conhecimento. Pior ainda é punir quem produz informações que não lhe agradam. Não é, portanto, surpreendente que o rei Tigranes acima mencionado tenha perdido a guerra contra os romanos no ano 68 antes de Cristo [6].
Não mate o mensageiro!
Referências
[1] Jornalistas são ameaçados por bolsonaristas no Santuário Nacional de Aparecida
https://jornalistaslivres.org/jornalistas-sao-ameacados-por-bolsonaristas-no-santuario-nacional-de-aparecida/?fbclid=IwAR2TrNUX8jpXxlfcz_b9WvzkwzrZ_GdAfRchlQxSx33kPbrbj1jfTrNpK_0
[2] Jornalistas são cercados, ameaçados e hostilizados por apoiadores de Bolsonaro após culto na Assembleia de Deus
https://sjsp.org.br/noticias/jornalistas-sao-cercados-ameacados-e-hostilizados-por-apoiadores-de-bolsonaro-ap-f2c4
[3] Bolsonarista agride e ameaça cinegrafista da GloboNews de morte em Aparecida
https://www.poder360.com.br/brasil/bolsonarista-agride-e-ameaca-cinegrafista-da-globonews-de-morte-em-aparecida/
[4] Cruzada 2005
https://www.youtube.com/watch?v=QOqUUZKXOik&t=467s
[5] Panorama: “Ne nuntium necare”
https://fapers.org.br/new-portal/2021/02/panorama-ne-nuntium-necare/
[6] A atual versão brasileira de “atirar no mensageiro”
https://www.dw.com/pt-br/a-atual-vers%C3%A3o-brasileira-de-atirar-no-mensageiro/a-63460188?fbclid=IwAR1E34NqizPukyMpWixnokUUIpsK-aNixiVbDRFhtJ6RmydQiHaHGJJhZrw
[7] “Não mate o mensageiro”
https://diariodocomercio.com.br/opiniao/nao-mate-o-mensageiro/
[8] Mídia deve assumir seu papel na naturalização da extrema-direita no Brasil
https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/10/05/midia-deve-assumir-seu-papel-na-naturalizacao-da-extrema-direita-no-brasil.htm?fbclid=IwAR3oGBylIjmzEkV54YiEW1v2ZJvuQozFFcUcHnDzlCkn6cC3v0FC9UAUxgo
[9] Competência em informação e desinfodemia no contexto da pandemia de covid-19
https://revista.ibict.br/liinc/article/view/5391
[10] O mundo depois do coronavírus. Artigo de Yuval Noah Harari
https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597469-o-mundo-depois-do-coronavirus-artigo-de-yuval-noah-harari
[11] Como será o mundo depois do coronavírus, segundo Yuval Noah Harari
https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597364-como-sera-o-mundo-depois-do-coronavirus-segundo-yuval-noah-harari
[12] Por que é tão difícil combater a crença em fake news, segundo a psicologia social
https://www.blogs.unicamp.br/politicanacabeca/2019/07/22/por-que-e-tao-dificil-combater-a-crenca-em-fake-news/
Ilustração: professor André Bacchi, no curso “Introdução ao pensamento científico”
https://www.youtube.com/c/Andr%C3%A9Bacchi