O cineasta paulista Jeferson Rodrigues de Rezende ficou extensivamente conhecido – sob a alcunha Jeferson De – no ano 2000, quando foi divulgado o seu Dogma Feijoada, manifesto que propunha, entre outras demandas, a reivindicação de maior visibilidade para cineastas negros no Brasil e a ressignificação dos clichês raciais então em voga nos filmes produzidos sob o jugo da chamada “Retomada do Cinema Brasileiro”. Este manifesto, ostensivamente inspirado no movimento fílmico dinamarquês que trazia à tona alguns mandamentos de feitura alternativa, preconizava sete exigências fundamentais para a produção de um cinema negro.
Segundo texto escrito pelo sociólogo e realizador Noel dos Santos Carvalho, também diretamente envolvido com o Dogma Feijoada, o hepteto norteador dos mandamentos deste manifesto obedece à seguinte determinação:
“1 – O filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro;
2 – O protagonista deve ser negro;
3 – A temática do filme tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira;
4 – O filme tem de ter um cronograma exeqüível. Filmes-urgentes;
5 – Personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos;
6 – O roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro;
7 – Super-heróis ou bandidos deverão ser evitados”.
Como ocorreu com o próprio movimento inspirador europeu, é óbvio que todos os mandamentos nem sempre são verificados nos filmes produzidos sob a sua inspiração direta, mas eles foram determinantes para a constituição militante da filmografia de Jeferson De, precocemente apelidado de “o Spike Lee brasileiro”, mas com resultados irregulares nesta comparação. Depois de alguns curtas-metragens contundentes [“Gênesis 22” (1999), “Distraída para a Morte” (2001), “Carolina” (2003) e “Narciso Rap” (2004)], ele teve uma estréia morna na direção de longas-metragens, com o filme “Bróder” (2010). Seguem-se o equivocadíssimo terror catarinense “O Amuleto” (2015), a comédia bem-intencionada porém fraca “Correndo Atrás” (2018) e alguns trabalhos televisivos – entre eles, a minissérie “Revolta dos Malês” (2019, co-dirigida por Belisário França). Até ele engrenar dois valorosos filmes recentes…
Em “M-8: Quando a Morte Socorre a Vida” (2019), ele serve-se de um poderoso ponto de partida, ao apresentar a história de um estudante de Medicina que identifica-se com os sofrimentos enfrentados por seus companheiros de vivência, ao constatar que os cadáveres que são dissecados nas aulas são quase todos negros como ele. Em “Doutor Gama” (2021), por sua vez, o diretor reconstitui alguns eventos-chave da trajetória do abolicionista baiano Luís Gonzaga Pinto da Gama [1830-1882]…
Em exibição nalgumas salas de cinema e disponível através do serviço de ‘streaming’ GloboPlay, o longa-metragem “Doutor Gama” permite que o diretor restabeleça a urgência de seus mandamentos reivindicativos. Na trama, o personagem-título é interpretado, em sua maturidade, por César Mello, que dota o advogado de toda a eloqüência requerida por sua atividade: no início, ele encara os espectadores de frente e pergunta-nos como conseguimos ser coniventes com a morte de tantas pessoas, por causa do racismo – que possui um acentuado viés estrutural, no país. Até que acompanhamos, em ‘flashback’, os fatos que possibilitaram que, antes de a escravidão ser abolida no Brasil, ele tenha conseguido formar-se em Direito.
Na infância, Luís (Pedro Guilherme) pede à sua mãe (Isabél Zuaa) para aprender a ler, mas ele é vendido pelo pai branco, que contrai uma vasta dívida de jogo. Felizmente, os proprietários de Luís não o maltratam tanto, ainda que continuem a tratá-lo como escravo. Após conhecer o estudante Antônio (Johnny Massaro), o jovem Luís (Ângelo Fernandes) desenvolve uma imediata amizade com ele, chamando a atenção pela avidez com que aprende a ler, a escrever, a expressar-se em Latim e a interpretar os dizeres voltaireanos. Ao conseguir um documento que comprova que ele nasceu livre, Luís Gama finalmente obtém o benefício de voltar a calçar sapatos. Sai da casa daqueles que o adquiriram como mercadoria e estuda advocacia, além de apaixonar-se pela neta da austera Francisca (Zezé Motta).
O roteiro não explica muito bem as condições que permitiram que o protagonista se formasse em Direito, mas, após uma passagem de tempo, é mostrado já adulto, exercendo a sua profissão de maneira abnegada: graças à existência da Lei Feijó, promulgada em 07 de novembro de 1831, que extinguiu o tráfico negreiro, ele conseguiu demonstrar que os escravos trazidos para o Brasil após esta data deveriam ser considerados livres. Seus honorários eram pagos com aquilo que seus clientes pobres dispunham: carrega orgulhoso uma galinha nos braços, pelas ruas da cidade onde habita. Até que surge uma grave denúncia, envolvendo o filho de alguém (o velho Santos, interpretado por Romeu Evaristo) que conheceu quando esteve cativo…
Os momentos mais veementes do filme dizem respeito às conseqüências deste crime, envolvendo o aprisionamento de um escravo que assassinou o vilanaz senhor branco, depois que ele violentou e estuprou a sua esposa. A opinião popular insiste para que o réu seja enforcado, enquanto Luís Gama, após sobreviver a uma emboscada, tenta conversar com a viúva do fazendeiro assassinado (Clara Choveaux). O restante acontece em pleno tribunal, e merece ser conferido de maneira respeitosa.
Ainda que a obra seja permeada pelas convenções produtivas da GloboFilmes, as interpretações são convincentes e o filme exorta os espectadores a conhecerem mais sobre este importante personagem da História do Brasil, que dedicou-se com afinco à libertação de vários escravos no país. Não é um filme tão ideologicamente ostensivo, como requerem os mandamentos do Dogma Feijoada, mas é urdido com zelo, adequando-se muito bem à necessidade por debate sobre obediência às leis, que gera tanto desentendimento no contexto politicamente polarizado da atualidade. Parafraseando um emergente vozerio que surge nos créditos finais do filme, a esforçada filmografia de Jeferson De importa!
Wesley Pereira de Castro.