Pensar a cultura digital como forma de artificialização do mundo torna possível compreender as sociabilidades como reflexo de uma ação de transformação. As práticas sociais, como trocas de experiências marcadas pela proximidade, há muito já não explicam a contingência das formas de se relacionar com o mundo e a natureza a partir do desenvolvimento técnico que modifica profundamente as relações sociais. Para chegar às sociabilidades em rede, um longo caminho foi promovido pelo incremento da técnica e da artificialidade em uma cultura abertamente tecnológica.
Com a internet às relações sociais sofrem um profundo impacto. A virtualização requer aspectos muito particulares na relação das pessoas com os lugares e remete a características como a ubiquidade e a simultaneidade. A presença do estranho – como aqueles que não se encaixam no mapa cognitivo, moral e estético do mundo – gera uma ambivalência intrínseca. A vitória de Donald Trump como presidente nos Estados Unidos, por exemplo, não estava no script. Ele passou de um bonachão excêntrico, midiático para dirigente da nação mais rica do mundo. O planeta inteiro tentou entender o presente com sua eleição e o futuro incerto sob o seu comando. Mas algo chamou a atenção e que não é novo nos estudos sociológicos, mas merece uma importante reflexão: a mixofobia.
Não é de hoje que o estranho incomoda. Temos exemplos trágicos na história que comprovam isso. O nazismo foi prova viva do que estou falando. Depois de Segunda Guerra Mundial, o mundo procurou ser mais tolerante através, por exemplo, de tratados como a Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada pela ONU em 1948 que estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos.
Vários discursos de Trump revelaram sua mixofobia, principalmente, com os latinos. Chegou a chamar os brasileiros de “porcos latinos” e que ia construir um muro na fronteira com o México e “os mexicanos iam pagar por ele”. Isso assustou o mundo. O seu discurso foi escancarado…. e o pior de tudo, acolhido pelos eleitores americanos.
O sociólogo polonês Zigmunt Bauman trata com muita propriedade sobre a mixofobia e a mixofilia já que as cidades e os próprios cidadãos, tão heterogêneos, convivem com multiculturalidade. Em seu livro “Confiança e medo na cidade” ele traz os conflitos e a necessidade que temos de conviver com o estranho. “A mixofobia e mixofilia coexistem não apenas em cada cidade, mas também em cada cidadão. Trata-se, claramente de uma coexistência incomoda, mas, mesmo assim muito significativa”.
Em um mundo que se diz globalizado e hiperconectado não é possível pensar em barreiras de proteção, mesmo assim, conviver com o estranho é difícil. Precisamos ainda discutir questões de gênero, de raça e de intolerância religiosa. O fantasma dos ideais nazistas ainda ronda muitos lugares. O discurso de Trump infelizmente ecoa em outros líderes mundiais e apenas escancarou o quanto o outro incomoda, mas, ironicamente, consumimos aquilo que o outro produz em várias partes do mundo. Como muito bem disse Bauman “Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras latinas. Só seu vizinho é estrangeiro.” A lógica do capital é cruel.
Em seu livro “Babel: entre a incerteza e a esperança”, Bauman nos alerta para o caminho perigoso que a sociedade contemporânea vem construindo “de maneira pendular, nós vamos da ânsia por mais liberdade à angústia por mais segurança”. Essa segurança pode ser entendida sob vários pontos de vista. Que a história não se repita.
Uma resposta
Maravilhoso e conciso artigo! De fundamental importância para a compreensão do mundo atual.