Quando alguém possui consciência de que está prestes a sucumbir à depressão e resolve enfrentar as suas atribulações de maneira adequada – ou seja, recorrendo a um acompanhamento psicológico ou psiquiátrico – depara-se, nalgum momento, com o chavão bem-intencionado “um dia de cada vez”. Esta frase serve para atenuar a cobrança exacerbada que, eventualmente, a pessoa depressiva direciona contra si mesma, visto que, muitas vezes, o impulso de autodestruição advém da constatação de que as metas genéricas do Capitalismo são pouco alcançáveis, em termos de um bem-estar padronizado por outrem. Neste sentido, valorizar a sobrevivência cotidiana é essencial…
Outra frase de efeito, muito pronunciada por quem lida com as mazelas psicanalíticas é: “quem sabe é quem sente”. Não se deve julgar como exageradas as reações de uma pessoa a uma determinada situação, por mais corriqueira que esta pareça, sem conhecermos os fundamentos comportamentais da pessoa em pauta. O que soa banal para alguns pode ser insuportável para outros – e vice-versa!
Recentemente, causou bastante controvérsia a decisão do norte-americano Spencer Elden, que, aos trinta anos de idade, processou a banda Nirvana por supostamente incitar a “pornografia infantil”, ao utilizar uma foto com a sua imagem na capa do disco “Nevermind”, lançado em 1991: despido, o bebê Spencer – então com apenas quatro meses – nada diante de uma nota de um dólar, pendurada num anzol. O ensaio fotográfico foi realizado mediante a autorização remunerada dos pais do bebê. Três décadas depois, o jovem alega sofrer prejuízos sociais irreversíveis por causa desta imagem, reproduzida voluntariamente noutros estágios de sua vida. Seria ele um interesseiro, que estaria simulando a própria depressão, a fim de ganhar dinheiro? Quem sabe é quem sente!
Sejam quais foram as razões que levaram Spencer Elden a acionar judicialmente a banda tanto tempo depois, são inúmeros os relatos de celebridades infantis que envolveram-se em polêmicas policiais ou advocatícias à medida que envelheceram: os casos de Drew Barrymore, Macaulay Culkin e Jordy, para citar apenas alguns, são bastante conhecidos e com resoluções mui distintas, mas podemos analisar também as repercussões midiáticas de tudo o que artistas como Justin Bieber ou Lindsay Lohan fazem. E é assim que chegamos à recomendação fílmica desta semana…
Lançado com compreensível estardalhaço no Festival de Cinema Independente de Sundance, o documentário sueco “O Menino Mais Bonito do Mundo” (2021, de Kristina Lindström & Kristian Petri) trouxe novamente à tona o assédio internacional envolvendo Björn Andrésen, que, aos quinze anos de idade, protagonizou o clássico “Morte em Veneza” (1971, de Luchino Visconti), no qual um pianista de meia-idade fica obsessivamente apaixonado por ele. Por mais que o enredo aborde um tipo de envolvimento estético que não envereda pela sexualidade – com base numa novela homônima do escritor Thomas Mann –, há quem considere o filme imoral, por estimular a hebefilia. Infelizmente, é o que os diretores do documentário fazem desde o início…
Sabendo que a menção a este filme seria a isca ideal para fisgar inúmeros cinéfilos e reacender um debate sobre o “cancelamento” de obras de arte, os diretores reaproveitam, de maneira capciosa, imagens do documentário “À Procura de Tadzio” (1970), em que o próprio Luchino Visconti [1906-1976] compartilha o processo titular, quando estava visitando cidades européias em busca de um adolescente que pudesse interpretar o supracitado personagem de “Morte em Veneza”. Testemunhamos a aparição deslumbrante de Björn Andrésen, visivelmente tímido, que demostra-se acuado quando pedem que ele fique seminu para ser fotografado durante os ensaios. Na narração do documentário atual, um julgamento ideológico explícito: “Luchino Visconti era descendente de aristocratas, porém socialista. Entretanto, possuía vários servos. Além disso, era abertamente homossexual”. O polemismo é disparado!
A despeito do modo objetificador com que o cineasta italiano lida com o garoto durante as filmagens, e de ser acentuado por Björn Andrésen – agora com sessenta e seis anos de idade – que quase toda a equipe era homossexual, ele fala pouco sobre o filme em si. Declara que “o inferno aconteceu realmente no Festival De Cinema de Cannes”, quando homens bem mais velhos e ricos cercaram-no, “como se fossem vermes ou morcegos”. Nesse aspecto, o pretexto denuncista do documentário perde a sua especificidade e é estendido para qualquer coletiva de imprensa, sobretudo quando há algum tipo de perseguição em relação aos artistas. O fato de ainda ser um adolescente, à época, torna a ubiqüidade do assédio sexual muito mais delicada, mas, ao contrário dos diretores suecos, o ex-muso evita acusar o célebre realizador de algum assédio. Ao invés disso, prefere descrever como foi a sua viagem de divulgação no Japão – onde chegou a gravar um disco, cantando em japonês, e tornou-se o molde principal para as figuras femininas e andróginas de alguns mangás – e relatar dilemas pessoais, com o suicídio de sua mãe, ainda na infância, e o falecimento súbito de um filho, aos oito meses de idade.
Se o documentário insiste em criar uma atmosfera de suspense ao apresentar cenas de “Morte em Veneza” com uma trilha musical quase policialesca, logo comparando com os instantes hodiernos de desorientação do ator envelhecido, a comiseração pretendida resvala na opção duvidosa por não problematizar a presença das câmeras em cenas-chave, como quando a senhoria do lugar onde vive Björn Andrésen precisa averiguar a periculosidade do ambiente, já que ela recebera denúncias freqüentes de que ele esquecera a válvula do gás de cozinha aberta. Noutro momento, o ator desperta um tanto atordoado num hotel e pergunta à sua namorada se são onze ou doze horas. Ela responde. Ele, então, confere o horário num relógio e a corrige de maneira rude: “são onze horas e quinze minutos”. O caráter ressentido e os traumas alcoólatras do personagem real passam a ocupar a narrativa. O título promete a investigação de um aforismo culpado, e oferta-nos um questionamento desconfortável, noutra medida: como associar a fonte de nossa infelicidade a um único evento?
Em determinado diálogo, um fotografo japonês com quem Björn Andrésen interage após várias décadas diz que as chagas que ele vivenciou foram demarcadas pelo Destino. Pelo modo ríspido como o ator reage a outros dissabores familiares (vide o dramático reencontro com a sua filha, com quem conversa muito pouco), isso talvez seja confirmado. O importante, gostando-se ou não do filme, é que ele chama a atenção para o perigo das abordagens noticiosas sobre obras famosas e sobre a responsabilidade do que falamos ou escrevemos sobre alguém. Enquanto isso, prestes a acontecer mais uma hecatombe política no Brasil, muitos comunicólogos de esquerda dedicam-se à reiteração chistosa de um possível adultério sofrido pelo atual presidente da República, comprovadamente ignóbil por uma enxurrada de motivos. Em âmbito moral, de quem é a culpa?
Wesley Pereira de Castro.