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Isolamento social preventivo X acolhimento audiovisual curativo: o abraço que provém do olhar…

Isolamento social preventivo X acolhimento audiovisual curativo: o abraço que provém do olhar…

A despeito do discurso tendenciosamente genocida do presidente brasileiro Jair Bolsonaro em relação ao enfrentamento da pandemia causada pelo COVID-19, que declarou terminantemente que a vida não pode ser considerada mais importante que a economia, a prática da quarentena continua sendo a medida recomendada para evitar que o vírus prolifere-se ainda mais pelo País. Para quem dispuser de condições de permanecer em casa, pelo maior tempo possível, são indicadas opções adicionais de entretenimento: várias emissoras e portais de internet disponibilizaram gratuitamente conteúdos artísticos que, noutro contexto, seriam pagos. O confinamento, portanto, não precisa incorrer em embrutecimento: o humanismo é condição essencial para sobreviver-se a qualquer crise!

Nesta conjuntura heterodoxa de consumo audiovisual – nunca falou-se tanto através de videoconferências, por exemplo! –, são particularmente recomendadas as obras que estimulam o contato dialogístico entre pessoas, ainda que à distância, por enquanto. E é neste sentido que a suma criatividade do realizador pernambucano Gabriel Mascaro volta à tona: devidamente reconhecido como um dos diretores mais inspirados do cinema brasileiro contemporâneo, seus filmes comumente problematizam o convencionalismo induzido no modo de enxergar a realidade à volta de seus personagens. Sobretudo no plano documental…

Contemplado por um projeto governamental de fomento à produção de documentários regionais – infelizmente, não mais vigente na gestão bolsonarista, dolorosamente refratária à cultura – ele realizou o longa-metragem “Avenida Brasília Formosa” (2010), sobre as relações vicinais de alguns moradores do bairro Brasília Teimosa, em Recife, capital de Pernambuco. Seguiu à risca o jargão do projeto: “quando a realidade parece ficção, é hora de fazer documentários”, realizando um ótimo e contundente filme, sobremaneira adequado para quem encontra-se atualmente em quarentena.

No afã por facilitar a condução espectatorial em relação ao acompanhamento de situações do dia a dia nordestino, o cineasta escolheu alguns personagens reais como vetores de identificação: o garotinho Cauan, prestes a completar cinco anos de idade, que sofre zombarias na escola por demorar demais para escrever o próprio nome; o pescador Pirambu, transferido para uma zona residencial afastada de seu ambiente de trabalho, onde incorre na legitimação espontânea do machismo através de comentários sobre adultério, transfobia e temas congêneres; a manicure Débora, que sonha em participar do programa de TV “Big Brother Brasil”; e o garçom Fábio, que trabalha como cinegrafista de eventos e dança na igreja evangélica que freqüenta. Pessoas comuns, respeitadas de maneira solene pela direção fotográfica mui dignificadora do filme, a cargo do talentosíssimo Ivo Lopes Araújo.

Especialista em implodir as distinções tradicionais entre ficção e documentário, Gabriel Mascaro conduz o seu filme, pertencente à segunda categoria, como se pertencesse à primeira, sem qualquer perda de autenticidade. Muitíssimo pelo contrário: as situações fluem naturalmente porque é assim que a vida desenrola-se, algo que está sendo notado de maneira proveitosa nesta época de confinamento preventivo. Estimuladas a permanecerem em casa, as pessoas estão corrigindo as lacunas afetivas engendradas pelo ritmo desumano do capitalismo hodierno. Menos obcecados pela circulação comercial de mercadorias que atendem menos a necessidades elementares que aos ditames da competitividade interclassista, os quarentenados redimensionam as suas práticas familiares diuturnas, percebendo a organicidade benfazeja das relações entre seres humanos. E é exatamente sobre isso que o filme versa…

Um dos apanágios mais elogiáveis de “Avenida Brasília Formosa” é o modo como a captação sonora dos ambientes revela a pluralidade de gostos e opiniões diversos que convivem harmonicamente numa mesma comunidade. Nas cenas em que Fábio caminha pelas ruas, por exemplo, a musicalidade modifica-se radicalmente a cada esquina que ele cruza. Ritmos diversos pontuam o seu percurso, metonimizando os caracteres múltiplos daquela população. Há quem prefira ouvir forró, há quem aprecie as canções internacionais, há quem dance ao som do arrocha, há quem divirta-se numa roda de samba, há quem exulte ao som de hinos religiosos. Há quem reaja igualmente a todos estes ritmos, aliás. E não há necessidade de sobrepor um estilo ao outro: tudo depende dos interesses expressivos em voga no instante apresentado. Custa praticar isso no cotidiano?

Num dos momentos mais interessantes do documentário, Fábio é contratado para gravar o vídeo que Débora precisa para tentar ser admitida no programa. Filma-a entre amigas, numa praia, sensualizando sobre os barcos. Fábio torna-se um metadiretor fílmico, enquanto Débora passa a converter a si mesma em personagem ensaiada. No início, ela é mostrada conversando com suas clientes, admitindo que não teria vergonha de transar em frente às câmeras, no programa, caso estivesse sexualmente excitada. Próximo ao desfecho, a esposa de Pirambu interage demoradamente com um papagaio, até que a prisão de um estuprador, na vizinhança, modifica subitamente a perspectiva de filmagem do documentário. “Avenida Brasília Formosa” pedagogiza o olhar do espectador, estimulando-o a exercer novamente o zelo plurivocal que o capitalismo oblitera. Fica o estímulo audiovisual, portanto: enquanto não se pode abraçar ‘in loco’, que isto seja efetivamente feito através das mediações tecnológicas acolhedoras!

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